“A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.”
Shakespeare – Macbeth
A vida é mesmo cheia de som e fúria, como definiu o bardo inglês. Mas é uma expressão que pode ter várias camadas, ainda mais quando se convive com perda auditiva e seus efeitos. No dia 18 de novembro fui a um show maravilhoso no teatro do Sesc, de um dos maiores artistas desse país: Chico César. Foram duas horas de música de alta qualidade, letras certeiras e sensíveis, melodias que envolvem. Cantei tanto que achei que ia sair rouca do teatro.
Claro que depois esperei para tirar uma foto com o Chico. Também comprei o livro dele de poemas, que eu queria adquirir desde que soube do lançamento (e tem tempo isso, eu morava no Rio de Janeiro). Então dei o abraço tão esperado nesse gênio da música e da palavra, entreguei um presente (meus livros e zines numa sacolinha), recebi o autógrafo dele no livro, e quando fomos posar para a foto, ele lembrou que tinha ganhado meu livro e fez questão de segurá-lo, da mesma forma que eu segurava a obra dele. Chico César tirou foto segurando meu livro! Saí do Sesc ainda em êxtase.
Uma vírgula aqui: artista de verdade é assim, sem excesso de ego, e valoriza todos os que também estão no corre da arte. Até porque, quando a gente ama a arte, quando cria porque não sabe viver de outra forma, queremos é ver cada vez mais artistas produzindo e sendo reconhecidos. A gente quer o mundo cheio de arte!
Voltando à noite do show: só não foi perfeita porque no primeiro bloco de canções o som estava tão alto que até fiquei com medo de estragar meus aparelhos. Como se não fosse suficiente, uma das caixas deu defeito e ficou produzindo um zumbido insuportável durante umas três músicas. Os rapazes da técnica corriam de um lado para o outro tentando localizar a origem do problema, e o Chico não se deixou abalar. Seguiu cantando e ainda convocou o público a cantar mais alto do que o ruído. Mas que foi um alívio quando o cabo defeituoso foi trocado e o barulho parou… ah, foi alívio demais.
Eu já estava ficando com dor nos ouvidos, porque eu uso aparelhos, né? Então esse tipo de ruído estridente entra feito faca, acho que os aparelhos deixam mais estridentes ainda. E desligar meus equipamentos não era solução, tá? Ia parecer que o Chico estava cantando em gromelô (é uma “língua” inventada no teatro, com balbucios). Isso se eu conseguisse ouvir a voz dele, porque o ruído estava mais perto de mim e ia predominar. Então o jeito foi espremer meu cérebro pra conseguir focar na voz do Chico.
Já me perguntaram se eu consigo entender as músicas quando vou num show. A resposta é: depende. O Chico tem boa dicção e eu estava na primeira fila, então consegui acompanhar bem. Mas se tiver gente conversando ou cantando na minha frente, os sons se embolam nos aparelhos. Já expliquei em outra coluna: basicamente eu tenho microfones em cima das orelhas, que captam os sons e enviam para dentro dos ouvidos. Mas são como microfones de celular, captam tudo junto. Se forem músicas que eu já conheço e sei a letra, meu cérebro até consegue reconhecer e parece que estou entendendo (acho que a memória trabalha junto aí). Mas se eu não conhecer a música e tiver outros barulhos junto… parece grego. Geralmente é o momento em que aproveito para ir ao banheiro ou comprar mais uma cerveja, quando estou num bar ou festa. Senão parece que estou numa bolha, desconectada do ambiente.
Já ficou óbvio que prefiro shows em teatro, sentadinha na primeira fila? Mesmo assim, tem seu preço. O espetáculo do Chico César foi numa terça-feira… e eu passei a quarta-feira toda meio aérea e sentindo todos os sons abafados. Fazendo mais esforço que o habitual para conversar com as pessoas. Parecia que eu tinha bolas de algodão nos ouvidos, como a gente usa quando tem otite. A frase “não entendi” apareceu mais vezes do que de costume. E eu tinha a sensação de estar mareada, sabe? Vivendo dentro de um barco. Lembram que audição e equilíbrio são interligados?
Tenho um zumbido que me acompanha, consequência da perda auditiva. Até parece que tem um grilo morando no meu ouvido. Mas após momentos de muito estímulo sonoro, o zumbido fica mais intenso por dias. E também fico mais cansada, porque meu cérebro faz esforço para “sintonizar” o tempo inteiro. Imagina com aquele ruído competindo com a voz do Chico? Se estava ruim para quem escuta “normal”, imagina para mim?
Aí você pode me perguntar porque eu vou em shows e eventos, sabendo das consequências que me aguardam? Ora, porque eu também quero curtir um show dos meus artistas favoritos, prestigiar os amigos, sair para me divertir. Ter uma deficiência não significa que eu precise me privar desses momentos. Mas vou precisar de um “tempo de recuperação” maior. Provavelmente, no dia seguinte a um momento intenso estarei imprestável. A questão é que a felicidade compense o desgaste. Aquela velha questão de que os benefícios têm que ser maiores do que os efeitos colaterais… Isso não vale só para remédios.
Ter uma deficiência nos obriga a ser mais seletivos, isso é fato. Então, se eu for no seu evento, saiba que eu quero realmente estar ali. Porque o preço que vou pagar não é só do ingresso.






