Procurei saber bastante sobre o que disse Manuel Castells em sua recente passagem pelo Brasil. Castells é um dos mais importantes sociólogos vivos, de estudos incontestáveis sobre a sociedade em rede, as relações de poder em época de Internet e as engrenagens que operam nesse novíssimo cenário onde o físico nos escapa e nos sobra o virtual. Entre outras coisas interessantes, Castells aborda a questão das fake news e um novo ambiente de crença, que é a crença somente em si: a única informação possível passa a ser aquela que valida nossa crença, nosso sentimento, nosso pensamento e nossos sentidos. É como gado marcado mesmo. Arrebanha-se a tropa produzindo sensações de validação de pensamento para a mesma. Tem-se como resultado a pior das perversidades humanas. Se há a criação de uma notícia que valida o pensamento, acredita-se na veracidade desta notícia. O ser humano não é condicionado naturalmente a desacreditar das coisas. Quando se tem uma crença, em geral, ela se torna indestrutível.
Esse é um dos pontos principais da comunicação e da relação em sociedade no Século XXI. O outro é trabalhar em projeção, algo que abordo em outro texto, mas que, a grosso modo, significa considerar todos os fenômenos sociais a partir do que se vê no entorno e, com isso, tende-se a generalizar a sociedade através de si. “Racismo é mimimi, eu trabalhei e venci na vida sem precisar me vitimizar”, escreveu um sujeito nas redes sociais. Ou seja, o sentido coletivo é pensado a partir somente do que aconteceu no sentido individual. Claro que há um erro brutal na premissa. Mas ele se torna desimportante quando ativamos o que são hoje essas relações e quando juntamos ao ponto principal, o da crença. Ao ligarmos estes dois aspectos mencionados, chegamos ao fatídico resultado que, pegando o que Castells coloca e analisando com dois casos ocorridos no Brasil, acaba por definir o pensamento médio brasileiro na virada dos 2010 para os 2020: a era das caricaturas digitais.
Entre o imaginário e o cotidiano: um dilema para o personagem
O imaginário é o ambiente onde o indivíduo assume a sua própria narrativa. Exibe-se como um protagonista de uma trama onde se desconsidera a multiplicidade de outras relações que povoam o mundo. Ou seja, para que algo exista, ele precisa ver, sentir, tocar. Entender. Só o que faz parte da narrativa — ou seja, o entorno — tem a sua existência autenticada. Assim, constrói-se um imaginário onde o eu (o herói) conduz o cotidiano a partir somente daquilo que seu roteiro mais imediato propõe.
Essa espécie de construção de um personagem através do imaginário define a imagem que o indivíduo tem perante o mundo. É como se a primeira função de um adulto nos tempos contemporâneos fosse formar sua imagem para o mundo. O “ser” é determinado a partir de como a gente se apresenta para o mundo e não de como a gente enxerga a si mesmo. A rigor, somos todos vencedores e pensamos sempre da forma correta. Os primeiros passos nessa fabricação de personagem consiste, nos tempos atuais, no quê a gente acredita. Incorporam-se as crenças ao indivíduo: a ideologia, a religião e o time de futebol. Remetem-se informações no sentido de estender nossas crenças aos outros — quando não tentamos impor nossas crenças aos outros. Coletam-se informações que validam as crenças. Temos uma caricatura, um personagem, um simulacro da própria individualidade.
Ora, sabemos que o indivíduo é mais que somente suas crenças. Ele é também o cotidiano. Ele é a conta para pagar, o ônibus lotado, a música que faz sorri, o amor que ele vive, os filhos, os cachorros, o comer demais num churrasco de domingo, o pregar uma prateleira no quarto, o encontro da família, o aniversário dos amigos. Ele é o seu dia-a-dia, o escapismo do personagem para encontrar a verdade da rotina. Não há mais dramatização, não há mais protagonista de trama, não há mais um simulacro identitário. Há a pureza do cotidiano, suas mazelas, suas alegrias, suas indiferenças, seus prazeres. O cotidiano sempre deve se sobrepor à narrativa. A nossa construção de vida se dá pela ação das atitudes corriqueiras que determinam de fato o que a gente é.
Nos tempos atuais, o fenômeno se inverte. A narrativa se sobrepõe ao cotidiano. O personagem ganha luz sobre o ser. O personagem é aquele que se vê refém da própria ideologia, dos próprios preconceitos, da própria crença. Mesmo quando o cotidiano nos apresenta uma realidade concreta, optamos pela abstração do personagem em vez do factível da cena: assume-se a identidade construída e não a identidade real. Extermina-se o pensamento lógico quando o personagem se confronta com o real e, aí, cria-se um dilema que se impõe sobre a trama e sobre a realidade: quem toma a decisão é o personagem ou o indivíduo? Se o personagem luta contra violência, fascismo e machismo, como se portar diante de uma cena em que a realidade se coloca frente a uma raiva contra uma mulher, que o personagem tanto defende, mas que o desafiou? Se o personagem tem um compromisso com um clube ou um partido, seria de bom tom ele ter empatia com alguém que tem preferências por outro clube ou outro partido, mesmo que a realidade peça isso? E se o indivíduo revelar o personagem? Ele ainda existirá?
Houve dois casos recentes em que esse dilema ficou escancarado e observamos os personagens cederem de forma perversa ao indivíduo. Pretendo analisar o que escrevi a partir deles: o voto da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) na reforma da previdência e a agressão a uma torcedora gremista na torcida do Internacional no Grenal 421, disputado no Beira-Rio no dia 20 de julho de 2019.
Tabata Amaral: o linchamento dos humanistas
O voto da deputada Tabata Amaral na reforma da previdência foi contrário ao que eu penso sobre o assunto. Particularmente, tenho simpatia por ela. Numa era em que tudo é jogo, é relação de poder, ela votou de acordo com o que pensa. Não penso como ela. Não votaria nela. Mas tenho simpatia pela representação que ela tem. É preciso também admitir que nenhum outro deputado de esquerda encarou um ministro de Bolsonaro com a coragem e a firmeza com que ela fez quando enfrentou cara a cara o Ministro da Educação Abraham Weintraub. A práxis não é só convalidada quando parte de “um dos nossos”.
O problema é que Tabata não é “um dos nossos”. Como Ciro Gomes não era. Mesmo que sua postura perante ao nefasto ministro fosse louvável e interessante, ela não pertencia “ao quadro da esquerda”. Ela, portanto, teve a ousadia de fazer o que ninguém da esquerda fez não sendo da esquerda. Ela fez mais que comprar bolsa em brechó com as cores do arco-íris ou que postar que “ninguém larga a mão de ninguém” no Instagram (essa foi uma das poucas postagens que fiz e apaguei por arrependimento). Mas num país pré-concebido por simulacro, somente alguém da esquerda pode fazer isso.
Tabata não é perfeita. Votou a favor da reforma e foi desnecessariamente arrogante quando falou sobre um (im)provável “suicídio político”. Mas num país onde temos deputados envolvidos com corrupção, figuras execráveis e preconceituosas, falta de escrúpulos do judiciário, aberrações que subtraem o pensamento do povo e disseminação de notícias falsas para lobotomizar as pessoas, Tabata deveria ter bem menos importância nesse castelo de cartas marcadas. Mas a deputada cometeu o erro que não se pode ter. Com um perfil interessante demais para a esquerda e independente demais para a direita, ela preferiu ser ela. Ela não foi o personagem que se compõe ideologicamente mais por narrativa do que por cotidiano. Ela se desgarrou. Gado bom é gado marcado, no pasto. Quem passa da cerca é gente, não é gado.
Foi o estopim para apresentar a perversidade do personagem que se diz “defensor da mulher e do ser humano”. A esquerda massacrou Tabata Amaral. Os sites — e colei um link do Brasil 247, um site de esquerda -, as contas nas redes sociais, os influenciadores políticos de esquerda, as feministas, os comunistas e os defensores do livre pensamento foram unânimes em atacar a deputada. Ali, falou-se em traição, porque o imaginário desse pessoal todo queria, nas profundezas da alma, que Tabata fosse como “um de nós”. O MBL parabenizou depois de ter criticado o embate dela com o ministro, porque passou a desejar que ela fosse “um de nós”. Se o cotidiano consegue, e isto é fato, colocar num mesmo ser humano aquele que tem coragem de peitar um ministro de Bolsonaro e ter um voto a favor do que pensa Bolsonaro, o imaginário repudia. Porque ele pensa em bloco, sem a liberdade que nos faz humanos, que nos encarrega de falhar, de tomar decisões que não seguem aquilo que os outros querem.
Os ataques a Tabata foram execráveis e vieram de todos os lados. Ela, que nunca tomou uma atitude fascista, foi confrontada com o mais puro fascismo de quem acha que sua visão deve ser a visão de todos. Ela, mulher, foi confrontada com o mais puro machismo feminino que pode existir. Ela, jovem, foi classificada como raposa velha por quem de fato é raposa velha. O linchamento virtual sofrido por Tabata Amaral ilustrou, com riqueza de detalhes, a perversidade moral amplificada pelas redes sociais: quando o cotidiano apresentou uma situação que desagradou, materializou-se a crueldade do indivíduo. A crença no mundo melhor, no respeito, na igualdade e no amor (sic) se despedaçou para formar uma horda de ofensas, ódio e linchamento. Muitas vezes o personagem só existe na bio do Twitter.
A agressão no Grenal 421: o fascismo do antifascismo
A cena é chocante. Mãe e filho gremistas não conseguiram espaço para entrar na torcida mista no Grenal. Colocaram-se na torcida colorada para assistir ao jogo. Não estavam identificados. Somente uma mulher e uma criança. Passaram-se os 90 minutos sem qualquer incidente, uma vez que não houve registros de qualquer problema com a presença dos dois naquele setor. Só após o apito final, depois que a partida termina, a mãe tira da bolsa uma camisa para festejar com o filho. Uns cinco, seis anos de idade. Quando se tem essa idade, estar num estádio de futebol para ver seu ídolo de perto é um sonho. O sonho do menino se realizou. Feliz por ter visto o jogo, a mãe mostra a camisa do time do menino para a torcida do Grêmio. O jogo terminou empatado, era jogo de reservas. Não havia motivo algum para deboche. Com sinceridade, o gesto foi para espalhar para o mundo a alegria do filho. Um presente inesquecível.
A mulher e a criança são interceptadas por uma mulher com uma manta com a palavra ANTIFASCISTA escrita, mais dois torcedores e um funcionário do clube. Por mais que a camisa tenha sido devolvida depois, o ato de surrupiar o objeto tem uma simbologia maior para a criança: ali, naqueles segundos, tiravam-lhe o sonho, a alegria, a magia. O sorriso deu lugar ao choro. A tristeza abocanhou a felicidade. Não havia mais magia.
A manta do ANTIFASCISMO forneceu à cena uma simbologia tão grandiosa quanto o próprio choro do menino. A iniciativa é adotada por alguns movimentos dentro do clube. Segundo quem adota esse procedimento, é um “ato político” para identificar parte da torcida que combate o fascismo, a violência e a truculência dentro e fora do estádio de futebol. O que a gremista fez é de tanta inocência que chega a revoltar ainda mais. Ela ganhou a camisa de um jogador e mostrou para a torcida. Só. Onde há ofensa? Onde há irresponsabilidade? A espontaneidade do ato é tão lúdica que é impossível não emocionar. Mas, como fazem os animais, “o território é nosso”. A presença precisa ser marcada, o mastro está fincado e aqui, novamente, “só quem é dos nossos pode pisar”. O antifascismo propaga, em tese, que todos são iguais. Mas, no fundo, só é igual quem é como eu. Novamente há o pensamento de que a única espécie válida é a espécie que é como eu. Se nas redes sociais dizem que “mexeu com uma, mexeu com todas”, se dizem que a luta é pela convivência pacífica entre as pessoas, se vomitam coisas como “sororidade” (essa é a coisa mais falsa de todas), se chamam as mulheres de “manas”, o cotidiano novamente contradiz o personagem. Ali, mana antifascista empurra mana. Ali, eu mexo com uma. Ali, eu solto a mão para empurrar. Ali, ninguém mais é cidadão.
As redes sociais, neste caso em minoria, diga-se de passagem, avançaram no tema e imputaram à agredida a responsabilidade pelo episódio. Observando vagamente os perfis de quem partiu para a agressão virtual, há um choque: em geral, mulheres. Muitas, dizendo-se feministas. Muitas pessoas de esquerda. O Internacional emitiu uma nota oficial meio torta através de seu presidente. As melhores manifestações partiram dos jogadores (Edenilson e Nico López) e do vice de futebol Roberto Melo. Um grupo de blogueiras coloradas (com duas conselheiras) falou em linchar a mulher. Uma outra mulher, que, segundo o perfil, é “feminista e antifascista”, disse que faria muito pior. Não houve adesão de movimentos feministas e pacifistas. No máximo, uma que outra manifestação protocolar. Quem disse que não soltaria a mão de ninguém deixou escapar a mão de Taís, a gremista agredida. Quem disse que “mexeu com uma, mexeu com todas” deixou mexerem com Taís, a gremista agredida.
O cotidiano esmagou a teoria. Não há práxis honesta quando eu não faço aquilo que eu prego. O episódio no Grenal 421 revelou, assim como no episódio de Tabata Amaral, a perversidade das caricaturas digitais. Nas redes sociais, construímos um pensamento abstrato que serve para que os outros nos vejam dessa forma. Na vida real, a gente não é dessa forma. A gente é condicionado por crenças que a gente esconde no fundo do baú, por um pensamento enrustido que se depara frontalmente com aquilo que a gente mais condena. É quando o anti se torna pró: o antifascista é fascista, a feminista quer linchar mulher, quem apoia igualdade segrega. O cotidiano implacavelmente destrói o argumento da pessoa melhor. O desumano ato contra uma mulher e uma criança é relativizado, desviado, perversamente deturpado. Somos todos iguais, mas uns mais iguais que os outros.
Os personagens se revelam: atores no aplauso final
Depois do que aconteceu, o jornalista Carlos Lacerda, da Rádio Grenal, colocou, em seu primeiro pensamento, que era uma irresponsabilidade da gremista fazer o que fez. Em todas as vezes que encontrei o Lacerda e pegando seus pensamentos a respeito das coisas, vi um cara de boa índole. De verdade. Um guri que está fazendo seu trabalho de forma honesta e que tem várias postagens sobre preconceito, homofobia e com uma certa disposição corajosa para enfrentar um bando de haters nas redes sociais que eu, particularmente, não tenho. Independente do jornalismo feito pelo Lacerda (bem diferente do que eu faço, por exemplo), reconheço nele uma figura batalhadora e bem amável no convívio.
O erro cometido pelo Lacerda também foi cometido por outras pessoas depois do que houve no clássico. O seu personagem tem um compromisso com o Internacional. É o problema dos influenciadores digitais. Em geral, eles trabalham com algumas bandeiras e se vinculam a paixões, instituições e ideologias. É uma questão antiga no jornalismo e que se manifesta de forma contundente na sociedade em rede: como desafiar quem nos sustenta? Não sei se o Lacerda teve algum dilema no caso, mas o que me pareceu foi que, contaminado pelo personagem, precipitou-se ao não enxergar o todo da cena. Sua primeira atitude foi de defender o clube, a razão de seu sentimento e de seu personagem. Só que nenhuma instituição, organização ou paixão deve preponderar sobre qualquer questão humana. Violência não se relativiza, especialmente contra mulher e criança. Mais ainda se forem indefesos e em situação que não apresenta risco sequer. Qual o risco que aquelas duas pessoas apresentavam ali? Ferir a honra? Invadir território? Nada. Absolutamente nada.
A precipitação do Lacerda (sabendo que esse texto chegará a ele de alguma forma e, como faço uma citação nominal, espero, caso seja de seu gosto, uma resposta nominal, podendo ser pública, como faço aqui) ilustra de forma bastante eficaz o pensamento atual na era dos influenciadores digitais. Dias desses, vi uma influencer ser preconceituosa com uma senhora que pedia dinheiro. Vi uma outra comparar o fim dos likes no Instagram com a abolição da escravatura (1888). A construção de personagens desumaniza os seres. É como se eles precisassem ser influencers em tempo integral. Tudo o que consomem, produzem, realizam precisa bater com aquilo que lhes dá sustento.
Forma-se, a partir disso, o simulacro do ser. Passamos a não ser mais humanos; tornamo-nos personagens, reprodutores daquilo que o público espera de nós e não do que somos. É a desumanização do indivíduo em troca do papel que ele tem no ecossistema. Importa mais a representação do ser do que a ação do ser. Não há mais ser. Há só o simulacro, a caricatura digital, a arroba, o personagem. Não há mais cotidiano; há só a imagem criada para os outros. Não fazemos mais o que o coração manda; se fazemos, só de forma enrustida. Só fazemos aquilo que os outros querem que a gente faça.
Simulacros mal resolvidos: bois marcados para pensar
Não há só gado do lado de lá. Há gado do lado de cá, ruminando por justiça, mentindo que não vai soltar a mão de ninguém, mas abandonando todos esses princípios pré-fabricados em grupo de zap em troca da manutenção de uma caricatura tão frágil que nem a própria e suposta crença ideológica os sustenta. É um castelo de areia e a única forma de transformá-lo em algo mais sólido é justamente assumindo o que a gente realmente é e não o que a gente finge que é. Quando se “passa pano” em algo desprezível, como as atitudes do José de Abreu, por exemplo, não está se fazendo por convicção humana. Faz-se por associação ideológica, acariciando mais um na boiada, marcado, tangido, ferrado e engordado da mesma forma que eu. No final das contas, pau que bate em Chico também bate em Francisco.
Castells também disse que as relações nas redes hoje se dão por “fluxos curtos” que, com o tempo, são esquecidos. A vida não se trata do que você diz pensar hoje. Ela se trata do cotidiano e do que você faz nele e do que você faz dele. O dia-a-dia é mais forte que aquilo que você pensa apresentar aos outros. Quando teoria e prática condizem, parabéns, você está sendo coerente. Agora, quando a teoria fala em humanizar e a prática desumaniza, você colocou à frente da sua realidade o seu simulacro, que é abastecido por gados iguais a você. Bois marcados para pensar. Como você. De uma forma que você aprendeu a pensar e não, no fundo, com o pensamento que você quer ter.
Na sociedade do personagem, relativizar a violência sob uma justificativa que considera em primeiro lugar o clubismo, o partidarismo ou a ideologia é só mais um indício daquilo que estamos vivendo. Se a imagem se sobrepõe à existência, não há mais independência de pensamento e de existência em si. Só há o que disseram para a gente ser. Mas não disseram o que fazer quando, subitamente, o personagem some. É aí que vem o indivíduo, que, em épocas de intolerância, assume a barbárie de se revoltar contra quem não é parte do mesmo curral. O problema é que matar a caricatura digital não é tão fácil assim. Quando a gente acredita mais no personagem do que na gente mesmo, como fazer para voltar a ser realmente quem a gente é?
Explicação necessária
Antes que me acusem de falsa simetria ou de isentão, vou explicar uma coisinha sobre como eu funciono: seja do lado que for, eu não vou pensar integralmente igual a vocês. Tenho uma identificação pelas pautas de esquerda e vejo muita gente na esquerda de péssimo caráter, péssimos procedimentos e de atitudes lamentáveis. Às vezes eu também não tenho as melhores atitudes sobre algum assunto. Porque eu sou um ser humano. Eu também tenho o meu personagem, mas cuido para que ele não interfira no que eu sou. Eu assumo minha existência falha e, sem rabo preso ou qualquer vínculo ideológico que me torne refém de uma tribo, sinto-me extremamente confortável em apontar aquilo que penso para qualquer lado. Mas se eu sou de esquerda, por que não ataco o Bolsonaro ao invés de criticar a própria esquerda? Porque eu quero criticar pessoas da própria esquerda, ora bolas! E porque eu tenho em mim que tudo isso que escrevi e outras cositas más também foram e são fundamentais para que a gente tenha essa falência nas relações, esse apodrecimento das pessoas e essa falta de fazer as coisas do jeito que acredito. E, nesse exato momento, a única coisa que penso ser coerente com aquilo que eu sou é apontar para tudo que eu vejo de errado. Do lado de cá e do lado de lá. Se eu faço isso até apontando para mim, não será, definitivamente, uma questão ideológica que me impedirá apontar para vocês, não é mesmo?