JEANE BORDIGNON

Três vezes teatro

Foi uma verdadeira maratona, e valeu cada segundo. Estive por alguns dias em São Paulo visitando meu amigo Wesley (amizade dos tempos do Orkut!) e tivemos uma intensa programação teatral, praticamente todas as noites. Teve um musical grandioso, uma peça cheia de metalinguagem, e um monólogo que é um soco no estômago. Produções impecáveis, cada qual no seu estilo e tamanho.

Na sexta-feira foi a vez de, finalmente, assistir Elis, A Musical. Quase assisti quando esteve em Porto Alegre, cheguei a comprar o ingresso, mas tive um imprevisto familiar. E talvez tenha sido melhor ainda assistir no Teatro Claro, que tem toda a estrutura para musicais e proporciona a experiência com todos os seus detalhes. Fiquei encantada com a forma como o cenário vai caracterizando as cidades onde Elis viveu, e como os ambientes se transformam. Tudo muito bem pensado e certeiro.
Eu tinha apenas um aninho de idade quando a Pimentinha virou estrela, mas mesmo assim é uma das cantoras que mais amo na vida. Já vi muitos vídeos dela, li três biografias e o livro do João Marcello, conheço em detalhes a história que a peça mostra. Mas, naquela noite, eu pude ter a sensação de ver Elis Regina no palco. Por mais que eu conheça a Laila Garin e às vezes reconhecesse o timbre dela, ali ela era Elis, com aquela energia que só a gaúcha tinha, e a risada inconfundível. Foi mágico. Sou fã da Laila desde que a vi em “Eu te amo mesmo assim” (de 2010), e ela ainda me surpreende. Divina!
Cláudio Lins também entregou muita emoção vivendo César Camargo Mariano, arrepiei com o solo dele. E ainda deu uma “aulinha” sobre a Lei Rouanet no final, com o tom de deboche sutil que só um sagitariano tem. É uma satisfação perceber que a gente escolhe bem os artistas para admirar! Cláudio é amor antigo, desde a época em que ele era o namoradinho do Brasil, quando viveu o mocinho Bruno da novela História de Amor. 1995! Não vamos calcular quanto tempo faz, né?

No sábado, além de assistir a uma ótima peça, tinha a emoção de ver um dos meus atores favoritos em cena. Quem sabe da importância do Erom Cordeiro na minha vida entende o quanto é especial vê-lo no palco e depois dar aquele abraço carinhoso. Sabe um ator em quem você enxerga que o teatro é o lar dele? E dessa vez foi mais marcante ainda, porque pude perceber que estou entendendo de dentro como funciona essa coisa de interpretar, depois das experiências e leituras desse ano. É, eu avancei alguns passos para o lado de lá, e isso é emocionante.

Para além do Erom ser uma das minhas principais referências na arte de atuar, foi importante assistir a essa peça, Um Jardim para Tchekhov. A personagem central é Alma Duran, uma atriz madura que não consegue trabalho há três anos. Ela vai morar na casa da filha, a médica Isadora, que é muito cética e racional, e o genro Otto (personagem do Erom), um delegado meio esquentado e um tanto debochado, mas que enxerga a arte de Alma mais do que a própria filha. A atriz sonha em voltar aos palcos montando a peça O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchekhov. Enquanto ensaia o espetáculo e busca meios de viabilizá-lo, mesmo com a incredulidade da filha, Alma dá aulas de teatro para a jovem Lalá e encontra um novo amigo que lhe incentiva quando o projeto parece pouco provável de se realizar.
É inevitável para quem, como eu, também está nesse “corre” de produzir arte e viabilizar os próprios projetos, a identificação com as dificuldades de Alma Duran. A arte é uma paixão muito grande e uma necessidade vital, por isso mesmo com todos os obstáculos o artista não deixa de acreditar em seus projetos. Mas vale corromper o trabalho artístico para conseguir patrocínio? Vale tudo pelo projeto dos nossos sonhos? O espetáculo nos provoca esses questionamentos, e ainda desconstrói estereótipos sobre a vocação para a arte. Senti Um Jardim para Tchekhov como uma grande reverência ao teatro e àqueles que se doam aos seus personagens.
Enfim, o domingo… Fomos ver Prima Facie, monólogo apresentado brilhantemente por Débora Falabella. O Wesley já tinha assistido e imediatamente propôs que entrasse na nossa lista, mas não quis me dar spoilers. Eu sabia por alto que a peça abordava abuso sexual contra mulheres, tinha lido em algum lugar. Mas não imaginava que fosse um espetáculo tão dolorido de assistir.

Foi até difícil de respirar durante aqueles 90 minutos. Perdi a conta de quantas vezes puxei o ar com força, ao mesmo tempo em que lutava contra a náusea. Débora interpreta Tessa, uma advogada que nos mostra as entranhas do sistema judiciário. Um sistema que foi feito por homens e para os homens, e que torna ainda mais cruel a vida de uma mulher que foi violentada. Só nós mulheres sabemos que não dá pra relatar com exatidão um estupro ou uma tentativa de violência sexual. É natural do ser humano apagar as memórias que nos machucam. As lembranças viram uma névoa onde as imagens são confusas, mas a dor é nítida. 

Prima Facie é um espetáculo difícil de assistir, do qual a gente sai atordoado. Mas é muito necessário. Dá voz a milhares de mulheres que tiveram seus corpos e sua dignidade invadidos. Provoca a pensar na estrutura de acolhimento a essas mulheres que estão despedaçadas. Instiga a refletir sobre a sociedade machista e misógina em que estamos inseridos, onde nós mulheres somos tratadas como objetos feitos para satisfazer os homens. Na volta para casa do Wesley, enquanto esperávamos o metrô, ainda refletindo sobre a peça, anotei a seguinte frase: “Viemos de uma cultura em que a mulher não tem o direito de dizer não”. Como é possível que sejamos vistas como erradas quando negamos a nossa intimidade a um homem? Tantas mulheres ainda morrem porque o macho não aceita ouvir um não… Enquanto alguma de nós estiver morrendo por ser mulher, por ser vítima do machismo e do pretenso poder dos homens sobre nossos corpos, precisamos continuar levando aos palcos trabalhos como Prima Facie. Muito obrigada, Débora! Por nós, por todas.

E para finalizar… assistam teatro!

Um Jardim para Tchekhov ainda está em cartaz neste fim de semana no CCBB de São Paulo.

Prima Facie retorna aos palcos em 2025, fiquem atentos.

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