O decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo no país deveria deixar a polícia e, obviamente, toda a população do Rio Grande do Sul, de orelhas em pé. Em números absolutos, o estado é o segundo do país onde mais se entregam armas legalizadas nas mãos da criminalidade — ou em destinos incertos. A estatística está lá, no Anuário Brasileiro da Violência que, ironicamente, foi usado como dado de referência para liberar geral a posse em todos os estados da União, quase como aquela referência bibliográfica que o aluno preguiçoso do ensino médio incluiu no trabalho sem nunca ter lido.
Se, de fato, o estudo, que é complexo e alarmante, servisse de base a qualquer medida em relação aos armamentos, dificilmente motivaria maior liberação de revólveres e pistolas. Aqui no Rio Grande do Sul, se chegou a um recorde de 10.935 armas de fogo registradas pelas polícias entre 2016 e 2017. No mesmo período, porém, 2.578 dessas armas legais (23,5%) foram roubadas, furtadas, extraviadas ou perdidas no Estado. Em uma relação feita pelo anuário, chegou-se à conclusão de que esses "vacilos" dos proprietários de armas fazem com que as forças de segurança no Rio Grande do Sul percam um mês de trabalho para desarmar o crime.
Isso porque as perdas ou roubos representaram, em 2017, 13% do total de 9.477 armas apreendidas no Rio Grande do Sul. Índice acima da média nacional, de 11%. Mas o problema representado por estas armas é bem maior e cumulativo ao longo dos anos. Na prática, raramente a polícia reencontra as armas legais tornadas ilegais. Somente 312 das armas apreendidas (3,3%) em 2017 eram registradas. Vale lembrar que o Estado registra a maior alta nas apreensões de arma de fogo pelas polícias em todo o país. Entre 2016 e 2017, o aumento desse tipo de apreensão foi de 28,5%.
Saca uma arma, e as outras três?
Agora, com o decreto assinado nesta terça, cada cidadão liberado para possuir armas poderá ter até quatro em sua casa ou no seu estabelecimento comercial. Imagine um mercadinho na Morada do Vale II, berço de um dos núcleos de facções criminosas gaúchas, não com uma, mas com quatro armas. É possível que o comerciante, treinado e capacitado, defenda-se do ataque dos bandidos com uma delas. Mas e as outras três?
Entre os pontos dúbios do decreto, está uma das condições para indeferimento da posse: manter relações com grupos criminosos. O decreto não especifica que tipo de relação é esta.
: Só 3% das armas apreendidas no Rio Grande do Sul pela polícia estão entre as roubadas ou perdidas
Ao basear também a justificativa para a necessidade de ter as armas em casa ou no estabelecimento simplesmente na declaração do interessado, o campo fica aberto à possibilidade de falcatrua. O ataque ao mercado, muitas vezes, pode não envolver violência mas um acordo. Quatro pistolas no mercado legal custavam, em outubro do ano passado, R$ 16 mil. Repassadas ao crime, chegariam facilmente aos R$ 24 mil, devidamente registradas em ocorrências policiais como roubadas em um assalto.
Ou ainda, já que as relações com grupos criminosos deixam um vácuo de interpretação na legislação, é possível que a pistola, mantida na delicatesse em bairro nobre, no papel, para a proteção do comerciante que é irmão de um envolvido em crime do colarinho branco caia na mão do sobrinho e entre para a estatística das armas legais perdidas. Nada impede que o sobrinho, em mais uma briga de trânsito, descarregue a pistola na cabeça do motorista de aplicativo que só tentava chegar em casa inteiro naquela noite.
Armamento no campo
No meio rural, a flexibilização abre brecha para o armamento em larga escala. Nestes ambientes, há possibilidade, se justificado por declaração, de ter mais do que quatro armas. Um projeto de lei do deputado gaúcho Afonso Hamm (PP) ainda deve ser acelerado na Câmara dos Deputados para ampliar ainda mais o poder de fogo dos proprietários de terra. A perspectiva é de que eles poderão andar com o armamento em toda a extensão da propriedade, e não só na casa.
Na Região Metropolitana, o conflito pelo uso da água no campo é real. Em Viamão, foi denunciada a invasão de área do Quilombo da Anastácia, por exemplo, por grandes produtores de arroz para captarem água naquele ponto do Rio Gravataí. Pelo decreto, não seria de se estranhar se eles empurrassem as cercas acompanhados de espingardas. Do outro lado do cercado, os moradores do quilombo nem imaginam ter condições financeiras para comprar um revólver de R$ 3 mil.
Armas, liquidificadores e trancas
Em entrevista, ainda na terça-feira, o ministro Onyx Lorenzoni (DEM) afirmou que o risco de uma arma em casa com crianças é o mesmo que o de um liquidificador. Pois o decreto, no papel, mostra preocupação com as crianças. Exige que, para a posse de armas em casa com pequenos ou deficientes, é preciso guardar o armamento em cofre ou em local seguro com tranca — não especifica o que é seguro e com tranca — e, o que é pior, não haverá fiscalização da autoridade sobre estas condições descritas pelo interessado.
Em nota publicada tão logo o presidente Jair Bolsonaro (PSL) divulgou o decreto, usando o Anuário Brasileiro da Violência para amparar os índices de homicídios acima de 10 por 100 mil habitantes nos estados — e, com isso justificando a necessidade do ato —, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que reúne os principais especialistas no tema no país, e que abastecem o anuário, manifestou repúdio à flexibilização.
"Trata-se de uma aposta na violência, uma vez que existem evidências bastantes robustas dentro do debate sobre segurança pública que, quanto mais armas, mais crimes. A prioridade do governo deveria ser melhorar seus próprios instrumentos de controle de circulação de armas de fogo. Basta dizer que 94,9% das armas apreendidas em 2017 não foram cadastradas no sistema da Polícia Federal (SINARM) e 13.782 armas legais foram perdidas, extraviadas ou roubadas, o que equivale a 11,5% das armas apreendidas pelas polícias no mesmo ano. É como se um mês de trabalho das polícias tivesse se perdido", diz um trecho da nota.
E reforça:
"Estranhamos ainda que o suposto critério adotado para a facilitação da posse, ou seja, nos estados onde a taxa de homicídios seja maior que 10 por 100 mil habitantes, simplesmente dá direito a todo cidadão brasileiro a ter uma arma de fogo. Ou seja, é um “não critério”. Trata-se de uma forma de burlar o espírito de Estatuto do Desarmamento".
Ora, o Brasil bate, ano a ano, recordes de homicídios, e 70% deles são cometidos usando armas de fogo. Mas atribuir estes números à ineficácia do Estatuto do Desarmamento não é correto, como mostram os estudos baseados no Datasus.
: Só em 2017, 9,4 mil armas foram apreendidas no Rio Grande do Sul. Mas 13% disso foi para o crime
Entre 1996 e 2003, a média de crescimento dos homicídios no Brasil foi de 2,2% ao ano. Ao passo que, de 2004, quando entra em vigor o estatuto, até 2016, esta média desaba para 0,29% ao ano — redução de 87%. Em 2016, 61.143 pessoas foram assassinadas no Brasil, totalizando uma taxa de 29,66 homicídios por 100 mil habitantes. Se o ritmo de crescimento mantivesse o mesmo pré-Estatuto, teríamos, em 2016, 83.905 vítimas, com uma taxa de 40,71 homicídios por 100 mil habitantes.
Enquanto isso, sob os auspícios do armamento, os especuladores do mercado financeiro deram vivas — e lucraram mais um pouco. As Forjas Taurus viraram Armas Taurus, e suas ações, antes do decreto, dispararam. Estrategicamente, porque especulador é volátil, desabaram após o "tímido" decreto.
Quem especulou, lucrou. Quem comprar e possuir as quatro armas no mercadinho, talvez dê o tiro antes do bandido, ou chegue, em sua casa, antes do assaltante até bauzinho com tranca. Ou talvez só aumente a estatística de armas entregues ao crime. Este é o fim de uma em cada quatro armas registradas no Rio Grande do Sul.
O QUE MUDA COM O DECRETO
: Será possível comprar e manter quatro armas em casa ou no trabalho (desde que o estabelecimento esteja em nome do titular do registro). Antes, eram "duas armas de porte; duas armas de caça de alma raiada; e duas armas de caça de alma lisa".
: Demonstrando a necessidade, o limite para a compra de armas poderá ser ampliado. Até então, a definição se havia ou não necessidade de portar arma dependia da análise de um delegado da Polícia Federal.
: A análise da necessidade, agora será objetiva nos seguintes casos: moradores de estados com mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes, considerando dados de 2016 divulgados no Atlas da Violência 2018, o que contemplaria todos os Estados brasileiros; moradores em áreas rurais; proprietários ou representantes legais de estabelecimentos comerciais; colecionadores, atiradores e caçadores registrados no Exército; servidores ativos e inativos da segurança pública, da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), da administração penitenciária, do sistema socioeducativo ou em atividades de poder de polícia administrativa ou correição; militares ativos e inativos.
: Residentes em casas com crianças, adolescentes ou deficientes mentais deverão instalar um cofre em casa, ou manter a arma em local seguro com tranca, mas não haverá fiscalização.
: A renovação do registro de armas será feita a cada 10 anos, e não mais em 5 anos como até agora. O governo ainda pretende chamar para um novo cadastramento pessoas com registro de armas vencidos. Elas não serão punidas por terem mantido armas sem registro por um período. Os registros expedidos antes do decreto ficam, automaticamente, renovados por 10 anos.
: Entre as razões para negar o registro, o decreto prevê: falsidade comprovada nas afirmações sobre a necessidade de ter armas; quando o requerente mantém vínculo com grupos criminosos; quando comprovado que a pessoa é interposta de alguém que não preenche os requisitos para ter armas.
O QUE NÃO MUDA COM O DECRETO
: Precisa ser maior de 25 anos
: Ter o curso de tiro, comprovando a aptidão para uso da arma
: Realizar exame psicológico
: Não possuir antecedentes criminais
: Trabalhar e ter residência fixa