Da série me cortem os tubos! Me aguentem ou…
Que a maré não está pra peixe, todo mundo sabe.
O que espanta é que mesmo sabendo que um ou outro, ou muitos, enfrentam dificuldades, das mais diversas naturezas, aqueles que têm condições se recolhem ao fofo tapete da sala e ficam diante da lareira acesa, degustando um bom tinto chileno com queijo da colônia e assistindo a algum seriado daqueles enlatados norte-americanos.
Nem pensam em estender a mão. E quando o fazem, quase sempre buscam as luzes dos holofotes. Sei disso pela minha longa jornada em meios de comunicação, especialmente rádio e jornal, atividade que me levou a conhecer situações terríveis. Famílias que perderam tudo por causa de incêndios, enchentes, por descontrole financeiro decorrente do alcoolismo ou mesmo por causa das drogas.
Outras, de pessoas pobres que viveram situações dramáticas em consequência de doenças graves, que exigiam medicamentos de altos preços, tipos de leite caros, remédios importados, exames complicados e de elevado custo. Fiz muitas campanhas beneficentes em favor de todo tipo de gente carente.
Quando escrevi sobre luzes dos holofotes, sei bem ao que me refiro, e a quem. Geralmente políticos, detentores de cargos em legislativos e executivos, em busca de promoção pessoal. Ou lobos em pele de cordeiro, gente buscando vitrine para, mais adiante, pedir votos para locupletar-se politicamente.
Mas me chamou a atenção, dia desses, uma situação inusitada, algo que eu jamais esperava ouvir justamente de quem ouvi.
Conversava com um casal religioso, ele pastor de uma igreja cuja vertente não sei bem qual. Mas daqueles que anda de terno e gravata e com a Bíblia sob o braço. Ela, a esposa, recatada e do lar, se corta os cabelos não exagera; usa vestidos que ficam abaixo dos joelhos e – acho até – nem deve ser adepta à prática da depilação.
Falávamos sobre assuntos de interesse comum neste encontro que se deu sobre a calçada, em meio ao frenesi de um trânsito de final de tarde onde motoristas impacientes cantam pneus com freadas bruscas e buzinam alucinados para chegar um segundo mais cedo no conforto do lar.
No outro lado da larga avenida, restos de papelão, de móveis sucateados, e um casebre de uns três por três metros, no máximo, construído por um benfeitor anônimo depois que o abrigo improvisado queimou.
É onde sobrevive um casal relegado ao esquecimento, na situação extrema da miserabilidade, que não é visto pelas milhares e milhares de pessoas que todos os dias passa por aquele ponto. Comem e veste o pouco que lhe alcançam alguns. E não causam incômodo nenhum, a ninguém.
Eis que, ao final do colóquio mantido com o casal de religiosos, a senhora não vacila ao me questionar:
– E daí, o senhor sabe quando é que vão tirar aquele lixo dali? – apontando para o casebre e os restos de sucata que rodeiam a peça de madeira.
Queria saber, deduzi, quando algum órgão público iria expulsar o casal daquele cantinho e mandar limpar o terreno.
Aquilo estava ‘enfeiando’ a avenida, a visão limitada deles.
Fiquei mudo, juro. Passei por um momento de bloqueio mental e não encontrei as palavras certas para dar a resposta adequada.
Ainda bem.
Depois, pensei com meus botões: se uma pessoa toda religiosa e supostamente seguidora do que os homens escreveram na Bíblia diz um absurdo desses, o que sobra para os demais mortais? Aqueles que bebem vinho na frente da lareira assistindo filmes na televisão.
Justamente por isso, para o mundo que eu quero descer. Ah, aproveita e me corta os tubos.