RAFAEL MARTINELLI

Vereador de Gravataí chama de “14 meliantes” os mortos em operação policial; Cuidado, Policial Federal Coruja, os senhores são heróis, não os bandidos

Vereador Coruja e o ex-presidente da República Jair Bolsonaro

Irresponsável e antagônico à técnica que o senhor deve ter aprendido em sua formação profissional, Vereador Policial Federal Evandro Coruja (PP), é cometeres na tribuna, na sessão desta quinta-feira da Câmara de Gravataí, a acusação de que “14 meliantes”, “do lado de lá”, foram mortos na operação Escudo, deflagrada após o assassinato do soldado Patrick Bastos Reis, no Guarujá, em São Paulo.

O senhor já assistiu às imagens – que funcionarem – das câmeras corporais dos policiais, para fazer seu julgamento?

Eu não vi.

Não achei em lugar algum.

O senhor fala na tribuna que a operação foi “politizada”; é o que fazes, percebe? Não farei isso. Dou-lhe o benefício da dúvida, da dor de ver um colega tombar em serviço. Mas não esqueça que és hoje vereador. Suas palavras tem força, tanto quanto as diatribes letais de seu ex-deprimente da república.

Coruja, convença-me com provas, evidências ou indícios que seja, do porquê chamas de bandido Filipe do Nascimento, garçom e vendedor em uma barraca na Praia das Astúrias, morto aos 22 anos, que deixa enlutada uma filha de 7 e uma enteada de 9 anos?

– É um rapaz que não tinha costume de faltar, era pontual, é um dos que mais vendia, vendia muito bem. O pessoal e os clientes gostavam dele. Um cara que não falava mal dos outros. Ele falava pouco, gostava de tirar uma brincadeira com a molecada, mas, na maioria do tempo, era bem calado – contou ao G1, da Globo, Douglas Brito, empresário do litoral paulista que teve que acompanhar a namorada de seu funcionário no Instituto Médico Legal (IML) de Praia Grande para que ele não fosse enterrado como indigente.

A mulher disse a Brito que ele havia saído de bicicleta por volta das 20h para comprar macarrão em um mercado próximo de sua residência. Dois minutos depois, ouviu barulhos de tiros.

– Ela relatou que, no mesmo dia, mais cedo, os polícias estavam fazendo patrulhamento no beco e bateram lá na porta. Ele atendeu, pediram documentos, ficaram conversando com ele. Ela falou que um dos PMs entrou dentro da casa dela, onde estavam só as duas crianças, porque ele tinha saído para responder as perguntas de outros PMs.

A polícia lá dentro, por volta das 12h, ficou questionando as filhas dela se ele tinha alguma coisa guardada, o que que ele fazia, se ele usava alguma coisa de errado.

Douglas definiu Filipe como “um cara super de boa, tranquilo, caladão, que só fazia o dele”:

– Ele trabalhava comigo por volta de 2 para 3 anos. Tenho registro de pagamento dele desde 2022. Antes disso, ele recebia em dinheiro, ele não tinha conta. Ajudamos ele a tirar os documentos, abrir a conta. Do ano passado para cá que ele começou a receber Pix. Ele trabalhou esse fim de semana comigo, paguei ele no domingo (30). No dia seguinte, mataram ele – acrescentou, informando passagem que, vereador Coruja, ainda pode lhe dar razão, mas ainda não, porque o senhor não é juiz e nem carrasco, já que não temos pena de morte no Brasil:

– Ele tinha uma passagem pela polícia, mas ele trabalhava comigo. Está tendo uma base sólida de que ele não era envolvido, entendeu? É por essas questões de classe, preconceito com pessoas com passagem e por ser negro, né? Acaba juntando tudo.

E o pastor Moacir da Silva Júnior, de 34 anos, cuja esposa, ao lado dos dois filhos, disse que “a arma dele era a Bíblia” e denuncia ter sido executado e jogado no mato durante a operação?

Podem ter sido os traficantes os criadores de cadáveres inocentes? Sim. Aí está o benefício da dúvida que lhe concedo, em minha indignação.

Apelo ao senhor: não seria mais prudente aguardarmos as investigações?

Salvo engano, estamos diante de uma das maiores chacinas já documentadas no Brasil.

No Jacarezinho, em 2022, 25 pessoas foram mortas após uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Em 2007, na ‘Chacina do Pan’, foram 19 pessoas no Complexo do Alemão. Nos anos 1990, 21 pessoas foram mortas na Chacina de Vigário Geral em resposta à morte de quatro policiais.

O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos afirma estar “profundamente chocado” com o nível de violência policial no Brasil nos últimos dias, pede investigações imparciais e alerta que a semana foi uma das mais sangrentas em anos. Para a entidade, foram pelo menos 45 mortes em operações da polícia no Guarujá (SP), no Rio de Janeiro e no estado da Bahia.

Num comunicado emitido nesta quinta-feira, em Genebra, a porta-voz da entidade, Marta Hurtado, afirmou: “Estamos profundamente chocados com o alto número de assassinatos ocorridos na semana passada no Brasil, onde pelo menos 45 pessoas foram mortas em diferentes partes do país durante operações policiais supostamente destinadas a combater o tráfico de drogas e o crime organizado”.

Recomendo ao senhor, vereador PF Coruja, que acesse no Google a dissertação ‘Medindo Forças, de Terine Husek Coelho, mestre e doutoranda em Ciências Sociais pela UERJ, sobre a correlação clara entre a vitimização de policiais em serviço e o aumento da letalidade policial na mesma região após a realização de operações policiais.

Dados de sua pesquisa mostram que quando um policial morre em serviço, a chance de um civil ser morto no mesmo dia aumenta em 1150%. No dia seguinte, aumenta em 350%. Na semana seguinte, em 125%.

São os efeitos das chamadas ‘operações-vingança’.

– Esse efeito fica se alimentando. A vitimização policial é um jeito da polícia matar mais, mas também morrer – resumiu a pesquisadora à Agência Pública.

Sigamos no habeas corpus preventivo que lhe garanto.

– Se eu não der uma resposta, a minha tropa vai achar que eu não respondo. E elas esperam que eu faça alguma coisa. Os familiares também esperam que eu faça alguma coisa. É uma megaoperação para mostrar que a polícia tem condições de reagir e que não vai se atirar na polícia em vão – explica comandante, ouvido pela pesquisadora, sob condição de anonimato.

Não vejo como poderia ser diferente, na vida real. Meu questionamento é pelos julgamentos precipitados, como o seu, vereador PF Coruja.

Olha o que conta a pesquisadora:

– Até uso muito pouco esse termo ‘operação vingança’. Eu tento tirar um pouco isso. Porque dá a impressão de que quando você fala esse termo parece que são policiais que estão se vingando ali por conta própria, mas eu tento jogar a responsabilidade para cima. Você enquanto a cabeça pensante, você sabe o que vai acontecer e você tem que tentar controlar a situação. Você sabe que o policial vai ficar revoltado. E o importante é saber que estratégia você tem para que essa revolta não se transforme em mais mortes. E que não seja multiplicação de dor. Porque isso não tem efeito. Isso tem efeito simbólico no policial de dizer que deu uma resposta. Mas essa não deveria ser a postura da polícia. A gente tem uma lei, a gente tem uma legislação a seguir, a gente tem caminhos que podem ser muito mais efetivos para a proteção policial do que a gente dar uma resposta desse tipo. Em uma das falas em uma UPP que eu fui fazer entrevista, a situação foi contrária. O Bope foi e matou um dos meninos dentro da comunidade e aí o tráfico foi na UPP matar um policial na frente. E era perto do carnaval e o comando falou: “Eu não posso fazer uma operação agora porque vai matar muita gente, tem muita gente na rua”. Segurou a tropa ali, mas ele precisou dar uma resposta àqueles policiais que estavam muito revoltados. Então tem umas puxadas de comando que acontecem muito pontualmente. 

Como se sentiria o senhor, vereador Coruja, se eu tratasse como bandidos os 12 policiais que estão sendo processados pelo massacre em Paraisópolis, ocorrido em dezembro de 2019 na zona sul de SP, que restou em nove jovens mortos, com idades entre 14 e 23 anos, e um número incontável de feridos, e que, no fim do mês passado, teve a primeira audiência do processo criminal que pode condenar seus colegas aos crimes de homicídio com dolo eventual, quando se assume o risco de matar, com pena pode variar de 12 a 30 anos de prisão, e lesão corporal, com pena de 2 a 8 anos?

Ao fim, vereador Coruja, o senhor encerra sua fala, que quem quiser assistir acesse a partir de 1h13 no vídeo abaixo, instigando:

– Qual sociedade queremos deixar para nossos filhos?

Respondo por mim: uma sociedade que, entre outras coisas, apoie policiais que tenham técnica e preparo suficientes para cumprir a lei, sem vendetas, por mais revoltante que sejam mortes como a do SD Patrick, no Guarujá.

Você e outros profissionais da segurança pública que empenham a vida por nós, Coruja, não são iguais aos traficantes ou milicianos. Vocês são – ou deveriam ser – nossos heróis. Os bandidos são eles.

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