Na semana que antecedeu o Carnaval, a Onça Negra de Gravataí completou 58 anos. Quase seis décadas de uma rara história de entrega à cultura popular. Compromisso cada vez mais raro em tempos de massacre conservador em todas as esferas. Mas a nossa onça está acuada. Sentiu o golpe do bloco que parece ser o da moda agora por estes lados, o dos carolas, caretas e conservadores, que cada vez mais fazem minguar o carnaval popular na Região Metropolitana.
No coração deste jornalista admirador do carnaval de escolas de samba, e de tudo o que cerca os barracões, fica o sentimento de saudade e tristeza pela chegada desta forma às quase seis décadas da onça. Porque, muito mais do que um trabalho jornalístico, a sexta feira de carnaval sempre foi motivo de faceirice e expectativa até o grito de guerra, o som inconfundível da bateria pulsando ali, diante dos nossos olhos, ouvidos e corações. E, no caso da Acadêmicos, o sempre inigualável choro da Rita Bitencourt quando, como presidente da escola de Gravataí, cruzava por último a linha final de desfile do Porto Seco.
Como jornalista em Gravataí, acompanhei o inferno de tempos quase insolúveis — depois de anos brilhantes no começo deste século — para a onça, superados com uma determinação que só quem é do povo, de verdade, consegue fazer. Vi a onça voltar às grandes escolas do Carnaval de Porto Alegre. Cobri uma primeira onda de chatos correr a escola do seu berço original e o abraço da comunidade mais carnavalesca da cidade, na Morada do Vale, que serviu como o impulso para uma nova escola de samba.
Eu já não estava trabalhando no jornalismo em Gravataí, mas seguia escalado para a cobertura do Carnaval nos últimos desfiles do Porto Seco. E fiz questão de, no momento do grito de guerra da onça negra, deixar o bloquinho de lado para admirar e torcer. Torcer muito por essa gente resistente. Em 2016, veio o vice-campeonato. E depois, o vazio.
Nesta sexta, por mais de uma vez, procurei a prefeitura de Gravataí para saber se, realmente, a cidade não havia programado nada para o Carnaval: não. Nem fora de época? Não, novamente. Em Cachoeirinha, um sopro de esperança. No outro domingo, dia 10 de março, haverá o Carnaval Popular, no Parcão, com apresentação da Rosas de Ouro, escola de samba da zona norte da cidade. Provavelmente, lá estarão alguns integrantes que já conheciam o caminho inteiro da passarela do Porto Seco atrás do abre-alas da onça.
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Nesta sexta, a sexta de Carnaval, o Porto Seco está vazio, provavelmente mergulhado na escuridão do nada — e nem sequer com a iluminação paga. Alguém imaginaria que, uns quatro ou cinco anos atrás, quando a RBS TV transmitiu pela última vez os desfiles daqui, a audiência do Carnaval de Porto Alegre bateu picos, e foi, em diversos momentos, superior à do milionário carnaval paulista. Não poderia deixar a onça de fora. Naquela noite, a escola de Gravataí foi a mais popular no voto da audiência — a mais popular em um evento com pico de audiência. Aí é aquele negócio do sujeito que diz que não gosta de samba, mas, com a mãozinha pra trás, pelo menos mexe os dedinhos, porque a Onça Negra, admitam, levou o nome de Gravataí lá em cima. E acabaram com isso, acuaram a nossa onça.
Parece que era este mesmo o plano: primeiro tiraram o carnaval popular da área central da cidade, como resultado natural, menos pessoas foram às arquibancadas e, ao fim, jogaram o festejo no esquecimento do descrédito. O bloco dos carolas, caretas e conservadores é implacável. Há um movimento de escolas de samba que luta para o "samba não morrer", e até conseguirão, em março, fazer um desfile extemporâneo, com seis escolas do grupo especial e outras do acesso. A Acadêmicos não estará lá. Está acuada e resguardada como uma onça que tem seu habitat ameaçado. E não está errada.
Lembro quando Rita Bitencourt assumiu a presidência e, além do envolvimento com o mundo do samba, trazia o compromisso com a transparência para a gestão da escola de samba. A meta agora é botar a casa em ordem e, depois de março, focar total em 2020. Há dívidas e inconformidades nas contas de 2016 e 2017 ainda, e a prioridade é acertar tudo, sacudir a poeira e botar o bloco na rua outra vez. Seria bom conseguir arrecadar o necessário reavivando a nossa festa popular aqui mesmo em Gravataí.
Infelizmente, os tempos não são coloridos. Joga-se confetes para gente que cultua armas e promete aniquilar os diferentes. E para quem pensa assim, o Porto Seco, o Parcão de Gravataí ou qualquer passarela do samba é perda de tempo e dinheiro. Dizem que era dinheiro para a saúde, educação e sabe lá para que mais. Mas eu pergunto: estimular a cultura popular não é prevenir problemas de saúde? Não é também estimular a educação? Experimenta levar um enredo para a sala de aula e verás a riqueza de conteúdo colocada ali.
Eu sei que isso vai passar, um outro carnaval vai chegar e o samba jamais vai morrer. Eles tentarão, mas é como diz a letra do Fundo de Quintal: "você não samba, mas tem que aplaudir". Vida longa à nossa Onça Negra de Gravataí.