RAFAEL MARTINELLI

Zaffa quer manter em Gravataí escola cívico-militar extinta por Lula; Secretária da Educação defende a ‘escola sem brinco e cabelo verde’; Eu, civil de nascença, reputo o modelo uma ‘mina ideológica’

Desde junho de 2021, Murialdo é primeira escola cívico-militar rural do Brasil, atendendo alunos em 14 turmas do 1° ao 9° ano do Ensino Fundamental

O encerramento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares pelo Ministério da Educação ainda não extingue em Gravataí o modelo que reputo uma ‘mina ideológica’, doutrinador, a ‘escola sem brinco’, principal bandeira do bolsonarismo, que farda crianças na Murialdo, zona rural do município.

O governo Luiz Zaffalon tem um convênio com o governo Eduardo Leite (PSDB) que, de forma paritária, investiu R$ 4 milhões na escola no ano e meio de funcionamento como primeira cívico-militar rural do Brasil.

E, caso o governo estadual também suspenda o programa (pelo qual recebeu do governo federal e repassou aos municípios cerca de R$ 20 milhões entre 2020 e 2023), Zaffa projeta manter em Gravataí.

Siga o tuíte do prefeito e, abaixo, sigo.

Casada com um militar, a secretária da Educação de Gravataí Aurelise Braun, que é uma apaixonada pelas escolas cívico-militares, falou com o Seguinte: sobre a polêmica, nesta quinta-feira.

– O retorno é maravilhoso. Sou fascinada por esse modelo. A comunidade aprova e há uma fila de 100 alunos esperando vaga – informa, lembrando que a instalação teve aprovação de 90% da comunidade escolar da região.

Conforme ela, a escola de 700 alunos, que ganhou 11 novas salas de aula e oferece café, lanche, almoço e artes marciais, técnicas agrícolas e uma banda marcial, tem 35 professores e 3 policiais militares aposentados – pagos pelo convênio entre os governos municipal e estadual após seleção, mas sem necessidade de capacitação para lidar com crianças e adolescentes; a experiência dos brigadianos é com o Proerd, o programa da Brigada Militar que previne álcool e drogas nas escolas.

– Não entendo como doutrinação. Não se trata de ideologias ou posicionamentos políticos. O objetivo é promover um retorno aos valores, civismo, dedicação, excelência, honestidade, hierarquia, postura e práticas de disciplina na unidade. Não entra o cabelo verde, o brinco, e sem qualquer tipo preconceito. Há um uniforme específico. Mas a ação dos PMs é da sala de aula para fora. Não desvirtua o modelo de ensino do município, não tem ingerência no aprendizado, não entra na sala de aula, não fere a gestão democrática – argumenta, explicando que alunos com problemas disciplinares não são expulsos; passam por acompanhamento do serviço de orientação educacional da escola.

– Lula extingue a escola cívico-militar por ideologia?

– Possivelmente – diz a secretária, repetindo a resposta ao ser perguntada se Bolsonaro não colocou em prática o modelo pelo mesmo motivo.

– É preciso respeitar as duas posições. Nem eu, nem o governo temos problemas com o contraditório. É a democracia – conclui a secretária, que nos primeiros dois meses no cargo já é, mesmo em meio à III Guerra Política de Gravataí (Zaffa x Marco Alba, pós Abílio x Oliveiras e Bordignon x Stasinski), identificada como uma ‘encantadora de serpentes’, por receber elogios de governistas e oposicionistas pelo tratamento com os parlamentares.

Analiso.

Antes de qualquer coisa é preciso esclarecer que o modelo cívico-militar implantado por Bolsonaro tem pouco a ver com colégios militares; o ex-presidente, como de costume, distribuiu a ideologia, mas não os recursos.

O valor investido por aluno é muito diferente em cada um dos modelos. Para efeitos de comparação, na escola pública brasileira a média é de R$ 3,2 mil, em colégios militares R$ 19 mil, conforme cálculo da professora associada e vice-diretora da Ufrgs, Aline Cunha, para GZH.

– Não se explicitou para a população a diferença entre o modelo proposto e o implementado – constatou.

Ao site, a pesquisadora sobre a militarização da educação, Iana Gomes de Lima, que é professora adjunta da Faculdade de Educação da Ufrgs, também estabelece diferenças: na escola pública não é necessário passar por um processo seletivo difícil para ingressar, o que pressupõe que alunos dos colégios militares tenham melhor avaliação:

– O programa é muito calcado nessa ideia de que as escolas cívico-militares terão a qualidade dos colégios militares, mas a gente sabe que isso é totalmente falso, porque a gente está falando de escolas públicas que são plurais, pra todos e pra todas, e que vão seguir tendo um investimento muito pequeno. O próprio salário dos professores de colégios militares é muito maior do que o de docentes de escolas públicas.

Aline Cunha também alertou para a militarização da escola.

– O que se quer alcançar com o sujeito na educação é diferente do que se quer na prestação de um serviço militar. Esse paralelo é, na sua origem, equivocado. No âmbito militar, qualquer comportamento civil é considerado rebeldia, subversão, uma concepção de educação que nós buscamos superar na abertura democrática, com a Constituição de 1988 e, sobretudo, na Lei de Diretrizes e Bases, em 1996 – disse.

Já Iana observou ainda que os militares que atuam como monitores não passaram por capacitações para trabalhar em escolas, o que acaba gerando conflitos e divergências de entendimento sobre o que é disciplina:

– Todo professor deseja uma turma respeitosa, mas a ideia de disciplina que construímos junto com alunos e alunas é pautada em princípios muito diferentes dos militares. A gente quer que eles e elas entendam que o que estão fazendo envolve respeito, pluralidade, diferença e coletividade, e não que façam isso por medo ou por uma questão autoritária.

Diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora de Educação do Banco Mundial, Claudia Costine, também ouvida pela reportagem, discordou da presença desses profissionais nas instituições.

– São PMs ou bombeiros reformados que vendem seus serviços para escolas públicas, com a promessa de que vão garantir a disciplina. Para o século 21 isso não faz sentido nenhum. A curto prazo a aprendizagem até melhora, se você impuser a disciplina com mão forte, mas não será a aprendizagem que importa – avaliou, referindo-se “ao desenvolvimento de competências cognitivas para os jovens atuarem em funções que não serão substituídas por inteligência artificial”.

Há, ainda, questões jurídicas.

O Tribunal de Justiça, em uma ação do Cpers, sindicato que representa os professores da rede estadual, suspendeu em 2022 a implementação de novas instituições cívico-militares em todo o Rio Grande do Sul.

O desembargador Ricardo Pippi Schmidt justificou que o programa fere a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a Lei Estadual 10.576/95, que delegam a professores a gestão do dia a dia escolar.

Ao fim, se o modelo de escolas cívico-militares não é utilizado nos países líderes nos rankings de avaliações internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), e conflitam com a LDB, que é a ‘Constituição da Educação’, reputo doutrinação, ideologia.

Ou aquele “no meu tempo era bom!”, que não passa de memória autobiográfica – o que a psicologia explica.

São aquelas recordações que criamos inadvertidamente, inconscientemente, que não correspondem à realidade, mas que se adequam à história que construímos sobre nossa vida, personalidade e, por consequência, comunidade.

Recomendo Por que criamos memórias do que nunca aconteceu?, entrevista dada à BBC por Martin Conway, professor de psicologia cognitiva da City University of London, no Reino Unido, e diretor do Centro de Memória e Direito da mesma universidade, que estuda o tema há 40 anos.

Ainda em março de 2021, quando o prefeito Zaffa aderiu ao programa, no artigo Escola cívico-militar em Gravataí é uma ’mina ideológica’, escrevi:

Chamo o tema de mina ideológica porque defender a escola cívico-militar como garantia de disciplina pode fazer parecer que os professores civis são os responsáveis pela suposta indisciplina.

Há pais que adoram se esconder nessa trincheira.

Pesquisa feita pela Secretaria de Educação do Paraná mostrou 75% de aprovação entre famílias de alunos.

Mina ideológica é, também, porque o comparativo do investimento com os resultados no aprendizado não parece justificar um programa nacional em tempos de teto de gastos para educação.

Repito hoje a conclusão:

É a democracia: Gravataí pode ter uma escola cívico-militar, motivo de comemoração de muitos. Estava nos planos de governo de Bolsonaro, Leite e Zaffa, aprovados pelas urnas com folga.

Já eu, apesar de crer que militares não aplicarão na galera do Murialdo aquele teste em que perguntam o que há de errado na fotografia que mostra mulher cheia de curvas andando na rua, e não há acerto porque ninguém percebeu o pastor alemão chamado Karl Marx dirigindo um carro ao fundo, reputo a escola cívico-militar não mais que uma mina ideológica – sempre sob risco de explodir, principalmente aos pés dos professores.

Talvez por ser civil de nascença, como dizia o Millôr.

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Receba nossa News

Publicidade