3º Neurônio | literatura

Lima Barreto, uma voz que nasceu negra na literatura

Lima Barreto em sua primeira internação por alcoolismo: escritor será homenageado nesta edição da Flip | Foto REPRODUÇÃO

Em biografia de Lilia Schwarcz, escritor discute o racismo no Brasil recém saído da escravidão. O Seguinte: reproduz o artigo publicado pelo El País

 

No topo da ficha da primeira internação de Affonso de Henriques de Lima Barreto no Hospício Nacional, o escritor é identificado como branco. O ano era 1914, o diagnóstico alcoolismo, a cidade Rio de Janeiro. Logo abaixo do cabeçalho, contudo, uma foto em sépia desmente a informação sobre sua cor. Assim como um sem número de intelectuais e homens públicos brasileiros, que eram negros, mas foram repetidamente retratados como brancos, Lima, ainda em vida, foi tomado pelo que não era. No seu caso, contudo, o “branqueamento” é ainda mais absurdo, pois ser negro, no último país a abolir a escravidão no mundo, foi questão central da vida e obra do escritor brasileiro.

“Nos personagens, nas tramas, em escritos pessoais, a atenção para a questão racial e as descrições dos tipos físicos dos personagens estão sempre em evidência”, diz a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Se no começo do século XX, o determinismo racial – que dizia que populações mestiças e negras eram biologicamente mais fracas – estava em voga, Lima aparecia como uma voz dissonante, combativa e, muitas vezes, solitária. “A capacidade mental do negro é medida a priori, a do branco a posteriori”, escreveu em seu Diário, em 1904, oferecendo um retrato claro do teor de racismo que vicejava no Brasil pós abolição da escravatura.

No topo da ficha da primeira internação de Affonso de Henriques de Lima Barreto no Hospício Nacional, o escritor é identificado como branco. O ano era 1914, o diagnóstico alcoolismo, a cidade Rio de Janeiro. Logo abaixo do cabeçalho, contudo, uma foto em sépia desmente a informação sobre sua cor. Assim como um sem número de intelectuais e homens públicos brasileiros, que eram negros, mas foram repetidamente retratados como brancos, Lima, ainda em vida, foi tomado pelo que não era. No seu caso, contudo, o “branqueamento” é ainda mais absurdo, pois ser negro, no último país a abolir a escravidão no mundo, foi questão central da vida e obra do escritor brasileiro.

“Nos personagens, nas tramas, em escritos pessoais, a atenção para a questão racial e as descrições dos tipos físicos dos personagens estão sempre em evidência”, diz a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Se no começo do século XX, o determinismo racial – que dizia que populações mestiças e negras eram biologicamente mais fracas – estava em voga, Lima aparecia como uma voz dissonante, combativa e, muitas vezes, solitária. “A capacidade mental do negro é medida a priori, a do branco a posteriori”, escreveu em seu Diário, em 1904, oferecendo um retrato claro do teor de racismo que vicejava no Brasil pós abolição da escravatura.

e quando adolescente o escritor cursou a Escola Politécnica e se descobriu como único negro de uma turma composta por filhos brancos da elite, sentindo toda a rejeição que poderia haver na situação; em Memórias do Escrivão Isaías Caminha, de 1909, seu romance de estreia, fez o personagem Isaías, filho bastardo de um padre com uma escrava, passar por uma infância em que recebeu educação regular, para, no futuro, descobrir que sua cor seria uma barreira para que ele galgasse posições. Assim como Isaías, Lima também teve um desenvolvimento relativamente estável na infância para descobrir na adolescência e início da juventude o deslocamento que sua condição social e sua cor lhe imporiam.

Comumente retratado como um escritor pobre, Lima teve certa estabilidade familiar durante boa parte de sua infância. O pai, João Henriques, e a mãe, Amália Augusta, eram ambiciosos e tinham boas relações com a elite. Tiveram educação e eram livres. Enquanto ele teve uma carreira promissora como tipógrafo, ela era professora escolar. As coisas começaram a mudar quando Amália morreu de tuberculose e João perdeu o emprego. Em 1902, ele, depois de uma série de episódios de esgotamento emocional, acabou perdendo também a razão, o que levou Lima a abandonar a faculdade para sustentar a casa.

 

: Capa da biografia de Lima Barreto | Foto DIVULGAÇÃO

 

Aos 21 anos, o escritor virou arrimo da família, constituída por três irmãos, pai e alguns agregados. Trabalhando como funcionário público e, ao mesmo tempo, tocando seu projeto literário com colaborações rotineiras em jornais e revistas, Lima encontrou desde cedo na veia crítica sua principal marca. Se denunciava o racismo, também direcionava ataques contra a República, a imprensa e qualquer coisa que cheirasse a estrangeirismos. “Há uma história de comparar Lima Barreto com Machado de Assis, mas é uma injustiça. Eles tinham projetos completamente diferentes, enquanto Machado era um universalista, Lima era um escritor engajado, que denunciava mazelas e criticava o que via em seu cotidiano”, diz Schwarcz.

Olhando para seu tempo, Lima foi, por exemplo, um critico feroz da reforma do centro do Rio, empreendida pelo prefeito engenheiro Pereira Passos. A época marca o início da abertura de grandes avenidas na cidade e da subsequente expulsão de populações pobres que viviam em cortiços para lugares cada vez mais longínquos. Segundo Schwarcz, “a visão que ele tinha da reforma é impressionante, porque muitas das testemunhas da época ficaram encantadas com o que estava sendo feito”. Ele, ao contrário, já percebia o drama de quem era expulso – o que redundaria, em última instância, em um problema crônico das cidades brasileiras, presente até hoje – e também se insuflava com o que via como exportação de padrões europeus de cidades, sobretudo Paris, para o Brasil. Grande birra de sua vida, por exemplo, era o bairro de Botafogo e a cidade de Petrópolis, ambos "afrancesados".

 

: Ficha de internação | Foto DIVULGAÇÃO

 

O triste fim de Lima Barreto

 

Entre 1909, ano de lançamento de Memórias do Escrivão Isaías Caminha, e 1922, data de sua morte, aos 41 anos, Lima escreveu centenas de crônicas e contos, como O homem que sabia javanês e Nova Califórnia, e publicou ao menos uma obra-prima: O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de 1911. Outros romances, como Numa e Ninfa e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, também foram publicados no curto intervalo de tempo. Além dessas publicações, muito material veio a público depois de sua morte, como o Diário ÍntimoClara dos Anjos e Os Bruzundangas. Em suma, foi uma produção profícua e intensa.

Com uma vida marcada pelo alcoolismo, contudo, seus textos e livros foram vistos e avaliados por críticos muitas vezes como erráticos. Lima acumulava diversos projetos ao mesmo tempo e não se encaixava no perfil virtuoso com que escritores eram vistos. Além disso, o tom autobiográfico de seus livros e a falta de preocupação em esconder a real personalidade de alguns de seus personagens não eram bem avaliados na época. Em Memórias do Escrivão Isaías Caminhas, por exemplo, ele retratou criticamente diferentes jornalistas que eram facilmente reconhecíveis, como o célebre cronista João do Rio e Edmundo Bittencourt, dono do Correio da Manhã, um dos jornais mais influentes da época. Não teve vida fácil após isso.

 

: Caricatura do escritor | Foto DIVULGAÇÃO

 

“Foi só depois de 1950, quando ele foi redescoberto pelo biógrafo Assis Barbosa, que sua obra começou a circular novamente, mas acho que seu nome só foi ser mais lembrado, de fato, recentemente”, diz Schwarcz. Hoje ele também será o principal homenageado da Festa Literária de Paraty, que acontece no final de julho. Segundo a biógrafa, também é interessante pensar que se a imagem do escritor boêmio foi tão romantizada em alguns casos na história da literatura, em Lima Barreto ela sempre foi vista como algo depreciativo. “A boemia e o alcoolismo, no caso dele, sempre apareceram como acusação”, diz a biógrafa. Por trás disso, talvez esteja a questão racial mais uma vez. Não que Lima não tivesse problemas graves com álcool. Tinha e eles custaram sua saúde. Mas é curioso pensar na diferença de tratamento que sua boemia recebia.

Em 1919, quando foi internado pela segunda vez no Hospício Nacional, Lima já era descrito como alguém andrajoso, com os sapatos trocados, transpirando muito, com inchaços no rosto e olhos “sampaku” – quando há um branco abaixo da íris, característica comum ao alcoolismo. Três anos depois morreu deitado em sua cama, enquanto lia uma revista francesa. Nessa época, Schwarcz descreve, sua personalidade estava se fundindo, cada vez mais, com a dos sofridos moradores dos subúrbios – tão retratados em seus textos.

Lima, segundo a biógrafa, é nosso visionário por ter falado de racismo praticamente cem anos antes do assunto entrar, de fato, em pauta. É nosso visionário também por ter antecipado uma série de temas brasileiros, como a urbanização pouco planejada das cidades. É triste por saber também, de antemão, que a coisa não ia bem e que a euforia dos anos em que viveu – era o tempo da Belle Époque, em que o avanço científico e o crescimento das cidades dava a sensação de que os problemas da humanidade estavam resolvidos – não iria durar. Infelizmente, o triste visionário talvez tenha tido sua maturidade interrompida: “Se pensarmos que Machado de Assis escreveu suas principais obras depois dos 40 anos, é uma lástima que Lima tenha ido tão cedo”.

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