3º Neurônio | crônica

Negros e minha memória cheia de furos

Depois de um ano em que tomei conhecimento de inúmeros casos de racismo, comecei a ler Lima Barreto: Triste visionário, a bela e terrível biografia escrita pela Lilia M. Schwarcz. Espero falar dela um dia desses. Por ora, fico com minha memória – com o que a Lilia e o Lima mexeram na minha memória. Não é muito, nem tem nada de exemplar, mas me esforçarei pra não causar bocejos. Os furos e remendos, bom, fazem parte do jogo.

Com exceção do meu avô materno, minha família era racista, não a ponto, porém, de ranger os dentes e espumar no canto da boca. Meu avô foi o único, por sinal, que conviveu com negros – talvez não fosse racista por isso mesmo. Ele também era o único com senso de humor e o único a não acreditar no sobrenatural. Interessante, pra uma pessoa que sabia apenas assinar o nome e fazer contas elementares.

A primeira coisa de que me dei conta é que tive apenas um colega negro, na quarta ou quinta série do que chamavam de primário naquele tempo. Não faz sentido, por menor que seja a população negra aqui no Sul. Era escola pública*, uma das pouquíssimas escolas da cidade, com crianças de todo tipo, dos filhos dos fazendeiros aos filhos do dono do armazém da esquina ou operários muito pobres. Lembro de um menino me pedindo pra fechar a janela por causa do frio que eu, bem agasalhado, não tinha percebido.

Negro apenas o Odracil – gozado, lembro do nome, logo eu, que meia hora depois não lembro como se chama a pessoa que me apresentaram. Eu o admirava por dois motivos fundamentais: era bom em matemática e caminhava sobre as mãos, as pernas pra cima. Ainda tinha jeito pra desenho – aí, nada demais, eu também tinha. Lembro de ter ido à casa dele, uma noite, estudar pra uma prova de matemática. Era num bairro pobre, quase favela. Anos depois soube que ele se tornou funcionário da prefeitura.

Perto da minha casa morava uma costureira, viúva ou separada. Criou o filho sozinha, naquele esquema de sempre, trabalhando madrugada afora. Ele se formou em Medicina. Andava com ternos escuros de caimento perfeito, gravata cor de vinho e camisas tão brancas que feriam os olhos da gente. Uma tia, perguntada se casaria com ele, disse que sim. Mentira. Ela queria dizer que daria pra ele – desde que ninguém soubesse.

Quando me mudei pra Porto Alegre, fui estudar no Julinho. Nenhum negro na minha turma, nem lembro de ver algum no recreio. Na faculdade, idem. Só mais tarde, ao conhecer gente ligada à literatura e ao jornalismo, teatro e cinema, publicidade e música, conheci negros e negras. Só posso falar de amizade com uns quatro ou cinco, incluindo aí uma cantora de blues por quem me apaixonei.

Isso tudo parece endossar aquela balela de que os gaúchos não tinham escravos. Colo aqui o que pesquei na internet: "Ainda hoje persiste uma visão generalizada de que a presença negra no Rio Grande do Sul foi pequena. Porém, os dados históricos refutam essa ideia: entre 1780 e 1807, o percentual da população escrava no Rio Grande oscilou entre 28 e 36%. Em 1819, 30,6% da população gaúcha era escrava, percentual quase idêntico ao da Bahia (30,8%) e maior do que em Pernambuco (26,5%) e no Rio de Janeiro (28,6%), capitanias estas consideradas historicamente escravagistas. Embora tenha havido migração de cativos no século XIX, a população de cor continuou grande no Estado: entre 1872 e 1873, os escravos eram possivelmente cerca de 22% dos habitantes e negros e pardos 34% da população total".

Pelos últimos dados que consegui, somando os autodeclarados negros e pardos, temos 17, 3%. É gente demais pra não se ver nem se conviver. Fora como faxineiras ou porteiros.

Agora, não posso deixar de notar que precisei de anos e anos pra saber que Machado de Assis era negro. Pelas fotos não se diria. Nem pelo que meus professores e professoras disseram. Como pensar que era negro se fundou a Academia Brasileira de Letras? Como pensar que era negro se era considerado o maior escritor do Bananão? Como Machado era manhoso, como jamais partia pro confronto direto, foi mais fácil aceitá-lo e fingir uma brancura redentora. Com Lima Barreto o buraco era mais embaixo. Brigão, boêmio, língua-de-trapo, Lima não esquecia que era negro nem deixava os brancos esquecerem.

Mesmo que a elite do Bananão não leia nem bula de remédio, deve ser chato ter de aguentar o fato: no topo da lista literária, dois negros; lá na rabeira, os Alencar, Macedo, Coelho Neto, entre outros medíocres de brancura confirmada em cartório.

*Claro que faz sentido. Olha os dados do censo do IBGE de 2010 que saíram uma semana depois que escrevi este texto: "Enquanto para o total da população, a taxa de analfabetismo é de 9,6%, entre os brancos é de 5,9%. Já entre pretos, o total sobe para 14,4% e entre pardos para 13%".

 

Ernani Ssó é escritor e vive em Porto Alegre. 

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