Reza a lenda que Dostoiévski viajava a Dresden, na Alemanha, uma vez por ano, para contemplar a beleza da Madona Sistina ou Madonna de San Sisto, do pintor italiano Rafael Sanzio, considerada por ele “a maior revelação do espírito humano”. Essa visita era como uma terapia, para que não perdesse a esperança nos homens e em si mesmo.
Este fato pode surpreender porque, em seus romances, o autor penetrou nas áreas mais obscuras e perversas da alma humana. Mas, em O Idiota, quando Ippolit, um dos personagens, pergunta a Lev Nikoláevitch Míchkin, protagonista da história, se é verdade que havia dito que a beleza, e não a riqueza ou a ciência, salvaria o mundo, ele se aproxima de um jovem que agoniza, fica ali um longo tempo, observando-o cheio de compaixão, até sua morte, para mostrar que gestos belos como esse são o que pode salvar o mundo.
“Seguramente não podemos viver sem pão, mas também é impossível existir sem beleza”, repetia Dostoievski, que lhe atribuía, para além da experiência estética, uma dimensão ética e religiosa. Ele via em Jesus um semeador de beleza: “Ele foi um exemplo de beleza e a implantou na alma das pessoas para que todos se fizessem irmãos entre si”.
Em sua “Carta aos Artistas”, de 1999, o Papa João Paulo II diz que a beleza, o assombro e o entusiasmo andam juntos: “…desejo a todos vocês, caríssimos artistas, que sejam abençoados, com particular intensidade, por essas inspirações criativas. Que a beleza que transmitirem às gerações futuras seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna. Os homens de hoje e de amanhã têm necessidade deste entusiasmo, para enfrentar e vencer os desafios cruciais que se prefiguram no horizonte. Com tal entusiasmo, a humanidade poderá, depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho”.
Mas a beleza, então, é essencial à Arte?
Não, não é, tanto que existe, embora muitos a rejeitem, a arte feia, que não deixa, por isto, de ser verdadeira.
A importância da contemplação estética foi abordada por inúmeros filósofos desde a Grécia Antiga. Platão disse que é a beleza da Arte que nos faz transcender e ter contato com o Cosmo, com Deus. E Schopenhauer afirmou que a beleza estética representada na Arte permite ao homem anestesiar-se momentaneamente para esquecer as dores de sua existência.
Porém, na Modernidade, que se fundou filosoficamente no Niilismo e no Existencialismo, a Arte ganhou novas finalidades: representar o real, tirar o cidadão comum de sua letargia, subverter a ordem vigente, quebrar tabus morais… Muitos artistas já não estão preocupados em agradar os outros, mas em expressar-se, em trazer à tona a realidade, a angústia, a desordem, o absurdo…
Em 1863, em resposta aos protestos de artistas que não haviam sido selecionados para participar de uma mostra destinada a membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura, entre os quais Manet, Courbet e Cézanne, realizou-se, em Paris, por ordem de Napoleão III, o Salão dos Recusados.
O evento foi um marco para o surgimento da Pintura Moderna, pois, a partir de então, vários artistas que não se sujeitavam às convenções estabelecidas passaram a realizar exposições independentes.
Em um momento em que a Academia impunha sua autoridade sobre o ensino, a produção e a exposição das obras de arte, que deviam seguir um determinado padrão estético e conter mensagens elevadas, o Salão dos Recusados atraiu um grande público. E, apesar de que algumas obras foram ridicularizadas, serviu para romper o poder da Academia e abriu caminho para mostras ainda mais ousadas, como as do Impressionismo e do Dadaismo.
Sempre que ouço que a Arte tem de exaltar a beleza, lembro de Guernica, pintada por Pablo Picasso em 1937, após o bombardeio do povoado basco por aviões alemães, durante a Guerra Civil Espanhola.
Não é, certamente, algo belo de ser visto, a começar pelas cores preta, branca e cinza, escolhidas pelo autor para retratar o clima sombrio daquele massacre, mas Guernica transcendeu seu tempo, passou a ser considerado “a obra-prima do século XX” e se tornou um símbolo mundial da luta pela paz.
Mas, então, toda a Arte feia tem de ter uma mensagem edificante? Não, não tem, e nem por isto deixa de ser menos verdadeira. Mas isto já é assunto para outra coluna.