3º NEURÔNIO

Uberminion: como precarização do trabalho recruta membros à extrema direita

Trabalho moderno, por plataformas digitais, vem incutido com componentes ideológicos. Recomendamos o artigo de Rosana Pinheiro Machado, antropóloga e cientista social, professora titular da University College Dublin, na Irlanda, publicado pelo UOL


Todo mundo conhece um uberminion. Você entra no carro, pedido por um aplicativo, e basta um estalo para que o motorista comece a disparar o repertório Venezuela-vagabundo-urna eletrônica. Na minha última corrida, um motorista tinha a voz do Bolsonaro no Waze, que gritava: “Vire à direita”.

Para além do caráter anedótico, o uberminion é um fenômeno político concreto do Brasil contemporâneo. Oferecer alternativas às transformações do mundo do trabalho —precarizado, plataformizado, digital ou empreendedor— é um dos desafios mais cabeludos do próximo governo comandado por Lula. Não digo isso apenas porque a tecnologia e o neoliberalismo fizeram com que as dinâmicas de trabalho sejam diferentes das do tempo em que o presidente eleito era sindicalista. Isso Lula sabe bem e ressaltou em seu primeiro discurso.

O problema maior a ser enfrentado é político. Uma parte significativa das novas formas precarizadas de trabalho via plataformas vem com um componente ideológico atrelado —e esse componente é profundamente antidemocrático. É como se o pacote do trabalho viesse com um plug-in político instalado, sem que o trabalhador tenha necessariamente escolhido esse produto.

Trabalho e política sempre andaram juntos. Trabalho aliena, mas também é terreno de resistência. Porém, a convivência entre as pessoas está cada vez mais escassa no século 21, cedendo lugar a funções feitas de maneiras isoladas e intermitentes, mediadas por plataformas e algoritmos obscuros que incentivam a hiperindividualização, a competição e o que a pesquisadora Fernanda Bruno chama de racionalidade algorítmica: o indivíduo que culpa a si próprio pelo fracasso, mesmo face a uma política de precificação nada transparente das plataformas.

O estudo sobre a mobilização de trabalhadores plataformizados cresceu muito nos últimos anos. O laboratório que dirijo, WorkPolitics, na Irlanda, pesquisa formas de despolitização e desmobilização. Queremos entender como princípios antidemocráticos se alastram nas mais diversas plataformas nas quais os sujeitos atuam.

Se nossas hipóteses se confirmarem, parte da economia digital popular tem operado como uma máquina não apenas de desmobilizar, mas também de recrutar novos membros à extrema direita. O trabalhador cai numa rede algorítmica política. Longe de ser uma vítima, trata-se de uma rede que ele mesmo teceu. É um processo simbiótico no qual valores políticos e arquitetura de redes se fortalecem mutuamente.

Tal simbiose é formada por questões ideológicas bastante simples. O uberminion não era um sujeito neutro antes de começar a trabalhar por aplicativos: ele não passou por lavagem cerebral.

Tão antigo quanto o próprio trabalho é o fenômeno do trabalhador pobre que despreza a identidade da classe trabalhadora e se espelha para cima. Não é à toa que a chamada nova classe C é o calcanhar de Aquiles do lulismo, por ter produzido as tais “classes ingratas”, que —ressentidas e cheia de aspirações materiais— não apenas se voltaram contra o PT como se tornaram o motor do bolsonarismo.

O uberminion é um homem que comprou um carro a duras penas e, em vez de brigar contra instituições financeiras ou aplicativos, quer uma arma para defender essa propriedade. É o sujeito que detesta “vagabundo” e acredita que todos que trabalham duro vencem. Monitorei dezenas de milhares de reações sobre a fala de Lula no podcast Flow sobre regulação do trabalho. O resultado é avassalador, apontando uma vasta maioria que despreza qualquer forma de regulação, e até mesmo ódio ao presidente eleito.

Mas a parte menos conhecida dessa história —a caixa preta— é como que a tecnologia exacerba esses valores. Muito se fala em trabalho de aplicativo, mas tão ou mais importante é olhar para o empreendedorismo popular digital.

Grupos de WhatsApp de vendedores são alguns dos maiores locais de divulgação de material bolsonarista. O Instagram, rede que pode ser excelente para transformar o negócio de muitos pequenos comerciantes, pode ser também uma isca de ilusões de dinheiro fácil, bitcoins, pirâmides, renda extra e independência financeira junto aos mais pobres. Além disso, a arquitetura de crescimento das plataformas é, inevitavelmente, engessada em torno da ilusão meritocrática.

Como já comentei aqui, é comum que muitos caiam na lábia de influencers (majoritariamente bolsonaristas) que ensinam como vender. Um dos nossos experimentos mais alarmantes sugere, ainda preliminarmente, que o crescimento nas redes está atrelado a um alinhamento com a extrema direita, produzindo um dilema que chamamos “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Para que empreendedores de primeira viagem cresçam, é preciso certas alianças, capitais e instrumentos. O crescimento traz seguidores, mas também o destravamento do plug-in político.

Há muita gente brilhante que ajudará a pensar essas questões no novo governo. Há estudos internacionais, modelos alternativos desenvolvidos e resistência por todos os lados. O Brasil tem grandes especialistas em plataformização, como Rafael Grohmann, entre tantos outros nomes. É preciso também saber que há alternativas: as Señoritas Courier, entregadoras ciclistas focadas na interseccionalidade e sustentabilidade; o AppJusto, que proporciona autonomia aos entregadores, e a Be-labs, que tem a sororidade como valor central no treinamento de empreendedoras digitais do Nordeste.

Não é preciso reinventar a roda, refazer marcos legais por completo ou ter uma única fórmula para tudo. Propostas de regulação de plataformas já existem. Plataformas alternativas também. Mas precisam ser levadas a sério e ganhar escala. A história recente do lulismo já ensinou que só proporcionar a renda sem a gestão política coletiva é um erro fatal. É preciso pensar em modelos de trabalho, proteção e remuneração que não deixem jamais de ter o coletivo como valor central no horizonte.

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