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A vida dos venezuelanos em Cachoeirinha

Jesus, Efrain e as meninas começam uma vida nova | GUILHERME KLAMT

O coração de Jesus Eduardo Ríos, 32 anos, estava já na boca. Fazia 18 horas que ele não tinha contato com a esposa, Efrain Marcele Roberto, 24 anos, desde que ela embarcara, com as duas filhas pequenas do casal, de dois e sete anos, em Manaus, rumo ao Aeroporto Salgado Filho. Mas foi só os primeiros sinais de que a família de venezuelanos naturais de Maturin conseguiria novamente abraçar-se, que a Ester Isabela, a menorzinha, gritou para a mãe:

— Mira, mamá!

Ela apontava Jesus e corria em direção a ele, do lado de fora do portão de desembarque. Fazia sete meses que a pequeninha não via o pai, e o reconheceu sem nenhuma sombra de dúvida. Era começo de dezembro, e a mais recente trovoada nos tempos sombrios da Venezuela ainda se ensaiava.

O ano começou com um sinal de alerta máximo no país já em crise. O nome de Guaidó alçando-se à presidência já reconhecida por boa parte do mundo e contrapondo o poder de Nicolas Maduro, deixa o restante da América do Sul com atenções para o país. Mas, enquanto por lá reina a incerteza, em Cachoeirinha, a mais de 6,7 mil quilômetros de Caracas, os 80 venezuelanos que encontraram refúgio na cidade lá em setembro do ano passado — entre eles, Jesus Eduardo —, têm motivos de sobra para reforçarem a esperança em dias melhores.

 

 

A cidade foi destacada pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), ao lado de São Paulo, como uma das cidades brasileiras que melhor acolheu e conseguiu dar encaminhamento aos refugiados do país vizinho. Dos 80 que chegaram em duas levas à cidade, 70 já estão empregados e, nos próximos dias, outros quatro devem ser confirmados em novos postos. Daquele grupo original, 60 já não estão morando no abrigo de Cachoeirinha. 

O prazo final de ocupação do local, que tem os custos de aluguel bancados pela ACNUR, é 31 de março e, de acordo com o secretário municipal da Assistência Social, Valdir Mattos, há grande possibilidade de que os seis venezuelanos ainda sem empregos formais consigam. Ou sejam absorvidos pela rede de assistência do município.

— Nosso esforço segue sendo para conseguirmos encaminhá-los, assim como foi feito com os demais. Se não for possível, não sairão de Cachoeirinha. Estamos estudando alternativas com o albergue e outras estruturas. Mas restam quase dois meses, tenho certeza que conseguiremos acolhe-los da melhor maneira — diz.

 

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E fala com conhecimento de causa. Desde a chegada dos 80 refugiados, o município mobilizou assistentes sociais e outros especialistas da secretaria em um verdadeiro mutirão de ajuda. Primeiro, os refugiados tiveram toda a situação social colocada em dia. Devidamente "armados" com suas carteiras de trabalho, iniciou a segunda etapa desta missão assumida pessoalmente pelo prefeito Miki Breier (PSB), ao incluir Cachoeirinha entre os destinos dos vizinhos que não tinham muitas soluções na superlotada Roraima.

— Foi uma lição que aprendemos todos como cidadãos e como cidade. Cachoeirinha foi construída assim, por pessoas vindas de todos os lugares e bem recebidas. Quando cada um combate todo o tipo de preconceito, a cidade cresce. Aprendemos todos com esta missão — valoriza o prefeito.

Pois as equipes do município atraíram os empreendedores dispostos a oferecer empregos aos refugiados. Desde empresas locais até uma indústria metalúrgica em Passo Fundo, que levou para lá seis venezuelanos atualmente instalados em um hotel da cidade. Ou ainda, um frigorífico de Marau, agora em fase de seleção em Cachoeirinha.

— A mídia nos ajudou muito, mostrando a importância desta ajuda humanitária e de que era fundamental oferecermos as condições para estas pessoas recomeçarem suas vidas. Nossas profissionais viajaram para acompanhar entrevistas e continuam acompanhando cada um dos nossos amigos venezuelanos, que já são de Cachoeirinha — conta o secretário.

 

Um emprego para Jesus

 

Jesus Eduardo foi um dos beneficiados por esta corrente do bem. Formado em teologia e funcionário de uma empresa de correios na região de Maturin, na qual era responsável pela área de segurança, ele se viu obrigado a abandonar o emprego e tentar a sorte no desconhecido Brasil. 

Foram 18 horas de ônibus até a fronteira, em Pacaraima, e mais algumas horas até Boa Vista. Se não bastasse, outros cinco meses sem nenhuma perspectiva.

— Eu estava em Roraima sem nenhuma possibilidade de emprego. Os venezuelanos lá eram explorados por fazendeiros e outras pessoas que te prometiam um emprego, você trabalhava e, como aconteceu comigo, não recebi por isso. Eu estava disposto a voltar para a Venezuela, nem que isso significasse voltar para morrer. Estava sozinho, longe da minha esposa e das minhas filhas — lembra.

Foi quando surgiu a oportunidade da "interiorização", ainda sem um destino determinado.

— Ele me mandou uma mensagem explicando as opções que tinha. Ora, mesmo não sabendo para onde iria no Brasil, era uma alternativa melhor que estava até aquele momento. Nós sofreríamos mais incerteza e mais saudade, mas era a solução que tínhamos naquele momento — lembra Efrain.

 

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Jesus topou e acabou em Cachoeirinha. Foi quando a maré, ou, como ele mesmo diz, "os planos de Deus" mudaram, ou se revelaram. Em um mês e meio, ele estava empregado no mercado Asun, uma das empresas locais que mais abriu oportunidades aos seus conterrâneos. Quando avisou à esposa que estava, finalmente, empregado, ela não conteve as lágrimas. E aí, foi a vez dela arriscar-se em nome do futuro deles.

— Ele me disse que mandaria um dinheiro para comida, e para nos ajudar. Eu aceitei, mas não usei para a comida. Tratei de comprar a passagem e viajar para o Brasil — lembra.

Efrain e as meninas chegaram a Roraima, como o marido havia feito meses antes. E aquela corrente do bem de Cachoeirinha mostrou outra de suas faces. Os amigos da Assembleia de Deus ajudaram o casal a se reencontrar e se estabelecer na cidade. 

Empregado, Jesus Eduardo deixou o abrigo e se estabeleceu em uma casa simples, alugada na Vila Anair, em Cachoeirinha. Ali é que ele daria início à nova vida. E com família completa. Efrain ainda se deslocou até Manaus e, de lá, no dia 10 de dezembro de 2018, partiu para Porto Alegre.

 

O recomeço em família

 

Em dezembro, recomeçou a vida da família de Maturin, ou melhor, de Cachoeirinha.

— Quando eu vejo o que temos conseguido, tenho certeza que toda essa situação está servindo como uma grande lição para o nosso povo venezuelano. Somos um povo mal acostumado, que se habituou a consumir demais e ostentar. Pois aquelas pessoas que sempre ostentaram, foram obrigadas a deixar o país e, fora da Venezuela, trabalham naquilo que sempre desprezaram. Ter humildade para recomeçar é fundamental. Agradeço muito à receptividade que as pessoas tiveram em Cachoeirinha, me lembram o povo da minha cidade. Não fosse por eles, eu não teria tanta esperança — ensina Jesus Eduardo.

 

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Entre os 60 venezuelanos que já deixaram o abrigo, pelo menos duas famílias estão completas e vivendo em Cachoeirinha. Jesus e Efrain, que agora estão sendo acompanhados pela prefeitura para o encaminhamento das filhas à creche e à escola, têm planos. O principal objetivo: uma casa própria.

— Vamos juntando, aos pouquinhos, quem sabe um dia?

Diz o pai, já habituado à forma como nós, brasileiros, conquistamos os objetivos de vida aos pouquinhos. Regresso à Venezuela? Não pensam, por enquanto. Talvez, só para visitar, mas nutrem a esperança de dias melhores também aos familiares que ficaram por lá.

— Acho que finalmente a oposição começou a agir da maneira correta, com um líder verdadeiro, que "bota a cara" e conquistou, estando dentro da Venezuela, a opinião e o apoio mundial. Tenho esperança de que, em um ano, a realidade do nosso país já será bem melhor — diz Jesus Eduardo.

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