Vou tentar descomplicar a polêmica sobre a negociação entre a Prefeitura de Cachoeirinha e os herdeiros do Mato do Julio. Não me parece o momento certo para o debate no ‘modo Greta Thunberg’.
Explico, buscando o máximo de objetividade e clareza, e já abro espaço para contestações: afinal, é uma opinião (após estudo, não achismo) de um jornalista convencido de que, no momento, é um bom negócio o acordo firmado pelo governo Miki Breier para o município receber 10 dos 250 hectares da área privada avaliada em R$ 200 milhões em troca de uma dívida judicializada de R$ 25 milhões em IPTU.
Primeiro, vamos à parte legal.
A Frente Parlamentar em Defesa do Mato do Julio e a Associação de Preservação da Natureza – Vale do Gravataí (APN-VG) questionam a realização de audiência pública na última sexta-feira apenas para apresentação do Estudo de Viabilidade Ambiental (EVA) produzido pela empresa Profill sob encomenda dos proprietários.
O Ministério Público não disse sim, nem não. Apenas ‘recomendou’ que a reunião não fosse realizada.
O argumento de vereadores e ambientalistas é que o zoneamento urbanístico não poderia ser discutido antes da realização de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA).
Só que não localizei no Plano Diretor, que é o conjunto de regras que normatizam a ocupação do solo em Cachoeirinha, a exigência do estudo neste momento.
Na seção DAS ÁREAS DE ESPECIAL INTERESSE AMBIENTAL, dois artigos tratam disso, mas sob uma condição especial: encampar o Mato do Júlio.
Art. 153. As Áreas de Especial Interesse Ambiental são áreas naturais ainda preservadas, as quais podem ser tornadas Unidades de Conservação nos termos da Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000, de acordo com os procedimentos previstos na mesma, quais sejam, estudo técnico e consulta popular, conforme indicativo da participação popular no processo de elaboração desta Lei.
Art. 154. São Áreas de Especial Interesse Ambiental, além de outras que possam ser apontadas pelo Plano Setorial Ambiental, e que devem ser objeto de procedimento para criação de Unidades de Conservação de Proteção Integral, num prazo de até 3 (três) anos:
I – o Parque Municipal Tancredo Neves;
II – a área conhecida como Banhado do Shopping;
III – o Horto Florestal.
Parágrafo Único – As áreas conhecidas como Mato do Júlio e Fazenda Guajuviras, Áreas de Especial Interesse Ambiental, serão objetos de estudos técnicos e consultas públicas, de iniciativa do Poder Executivo, buscando determinar as características das mesmas, para certificar a viabilidade de criação de Unidade de Conservação de Proteção Integral ou de Unidade de Uso Sustentável, no prazo de 1 (um) ano da publicação desta Lei, quando então será definida a sua destinação e utilização.
A interpretação que faço é lógica, porque há um “podem…” no texto da lei. Assim, entendo que os estudos só seriam necessários no caso da intenção de criar na área Unidade de Conservação.
Não é o caso – e aí não trato de vontades políticas, mas da realidade financeira.
O Mato do Júlio é uma área particular.
A forma como foi conduzida a audiência seria ilegal se a Prefeitura tivesse a intenção de desapropriar a área para fazer um parque ambiental, o que, pelo custo estimado da área, demandaria um terço de toda arrecadação de um ano de Cachoeirinha, incluindo verbas para salários, saúde e educação, por exemplo.
Assim, não identifico irregularidades na audiência pública promovida pelo Conselho do Plano Diretor, que apresentou o EVA e deflagrou o processo de colher sugestões da comunidade e questionamentos técnicos até o dia 3 de março.
O que se propõe em 2020, pelo acordo Prefeitura-herdeiros, é fazer o zoneamento da área, alterando o Plano Diretor por meio de projeto que será enviado à Câmara de Vereadores. Não se trata de uma licença ambiental. Qualquer autorização para construção demandará licenciamento da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Aí, com a encomenda de um EIA, e um EIA-RIMA, que no caso do Mato do Júlio teriam um custo estimado em R$ 5 milhões aos proprietários.
Pelo que apurei, não há nem como abrir um protocolo na Fepam para realizar um Estudo de Impacto Ambiental sem informar o tipo de zoneamento da área a ser pesquisada.
Bem observou o jornalista Eduardo Torres, na reportagem Acordo entre prefeitura e herdeiros do Mato do Júlio contraria pontos de estudo ambiental, publicada nesta segunda no Diário de Cachoeirinha, que estudo da Metroplan sobre prevenção de cheias, concluído em 2018, recomenda – grifo: recomenda – respeitar uma ‘mancha’ sem empreendimentos na região próxima ao Rio Gravataí.
Só que, incrível, esse trecho do outro lado da Free Way, o que a Metroplan considera com potencial alagadiço, já tem zoneamento e potencial de uso pelos proprietários; a parte lindeira a Flores da Cunha, a Casa dos Baptista e o ‘coração’ do Mato, não! Inclusive, esse espaço que hoje está no ‘limbo’ é o único dos 44 quilômetros quadrados de território de Cachoeirinha que não é inscrito como ‘zona urbana’.
Seria um ponto para análise da Fepam na hora de liberar futuros empreendimentos, bem como a necessidade de preservação, que o jornalista aponta na matéria a partir do EVA, de "40 espécies de répteis, anfíbios, mamíferos e aves" e "143 espécies vegetais".
Inegável é que o zoneamento pode acontecer agora, mas qualquer uso da área pelos proprietários precisará, além de respeitar o Plano Diretor e o Código de Obras, adequar-se a legislação ambiental para receber licença da Fepam, o que demandará o EIA e o EIA-RIMA – cujo prazo chega até três anos para empreendimentos em área tão delicada.
É preciso lembrar também que qualquer empreendimento que venha a ser aprovado no Mato, conforme a legislação ambiental, ampliará a transferência de áreas para o município. O parcelamento de solo prevê 35% de terras para a Prefeitura: 20% para arruamento, 15% para área institucional – como o parque ecológico projetado para o entorno da Casa dos Baptista – e 10% de área verde, sem possibilidade de construção.
Assim, como não é o zoneamento que ‘autoriza’ o que pode ou não ser feito da área pelos proprietários, o acordo firmado pela Prefeitura com os herdeiros me parece um bom negócio: garante a posse para o município de áreas avaliadas em R$ 50 milhões em troca de R$ 23 milhões de um IPTU que pode nunca ser pago.
Muitos podem se preocupar com interesses ocultos em uma área que pode render bilhões em valores agregados:
– Ah, mas depois que o zoneamento for feito, a concessão da licença ambiental é uma conseqüência, já que ninguém segura a força do dinheiro!
Sob esse prisma, entreguemos tudo aos vigaristas porque desnecessária é a legislação ambiental, e inoperantes, ou corruptos, são todos os mecanismos de controle externo, como o Ministério Público, e de apelação, como o Judiciário.
Há ainda, e poucos falam disso, a possibilidade da Prefeitura perder a disputa judicial travada com os herdeiros, que agora pode ser encerrada com o acordo entre as partes.
Seria o sonho dos que querem deixar o Mato do Júlio como está. Mas os R$ 23 milhões devidos em IPTU se tornariam, no máximo, R$ 1 milhão.
Cachoeirinha também não teria sua área garantida para fazer a perimetral às margens da Free Way, e de graça, já que pode vender ou trocar a área que também receberá próxima à Prefeitura pela realização da obra.
Não seria possível também explorar um potencial de crescimento ambientalmente responsável na área e seu entorno, já que, se for feito ali um condomínio de luxo, o que também traz receitas para o município, terá que ser vertical e preservando muito (combinemos: quanto mais natureza, mais valor de venda).
Ao fim, o acordo Prefeitura-herdeiros depende apenas da aprovação do zoneamento pela Câmara, e não de uma autorização para que se devaste o Mato do Júlio ou se cometam crimes ambientais. Se no futuro for intenção dos atuais, ou próximos proprietários, aí será o momento de entramos no ‘modo Greta Thunberg’ para preservar o que de direito tem que ser preservado.