3º Neurônio | ideias

Como criar filhos antirracistas? Uma jornada em primeira pessoa

Pintura do artista plástico Robinho Santana

Mãe de Serena (3 anos e meio) e Martín (7 meses) compartilha sua experiência na escolha de obras de arte e dos livros infantis tendo como meta o engajamento na pauta antirracista. O Seguinte: reproduz o artigo publicado pelo El País

 

Creio que o imperativo moral da nossa geração de pais e mães é criar filhas e filhos antirracistas. Não é uma tarefa fácil, principalmente porque somos bastante iletrados sobre o tema. Também porque, depois de séculos de genocídio, silenciamento e exclusão num dos países mais desiguais do mundo, somos insensíveis ao estrondoso barulho do racismo estrutural. Frente a esses desafios, como criar efetivamente filhos antirracistas?

Antes de mais nada, precisamos entender o que é ser antirracista; e a necessidade de falar proativamente sobre o tema com nossos filhos —uma questão sobre a qual eu mesma, como mãe negra de filhos de pele clara, até recentemente tinha dúvidas. Começo pelo segundo ponto, e spoiler: os dados nos asseguram que é melhor falar, e logo.

Talvez seja um choque, mas lá vai: segundo a Academia Americana de Pediatria (AAP), crianças começam a aprender sobre questões raciais desde muito cedo com seus mais influentes professores, os pais, num processo muito similar ao do aprendizado linguístico. Estudos mostram que as crianças conseguem distinguir características raciais e de gênero antes mesmo de aprender a andar. Entre 2 e 4 anos, internalizam vieses raciais. Num estudo com crianças de 3 anos, por exemplo, pesquisadores mostraram fotos de diversas crianças e perguntaram de quem elas queriam ser amigas; 1/3 das crianças negras disseram que queriam ser amigas apenas das crianças negras, ao passo que 86% das crianças brancas disseram querer ser amigas apenas das iguais a elas. Segundo um outro estudo, aos 6 anos elas tanto já entendem que há uma hierarquia racial, como podem elas mesmas já se engajarem em estereótipos racistas diretos.

Ou seja, não adianta tergiversar e fingir que o problema não existe. Como bem disse recentemente o rapper Emicida, em entrevista ao Roda Viva, “a gente precisa chegar primeiro”. Seguem abaixo algumas dicas do que temos tentado aqui em casa, aliado ao que dizem especialistas e organizações como a AAPUnicef e Faculdade de Medicina de Stanford, que mantêm recursos online para ajudar pais e mães a tratar sobre o tema com suas crianças.

 

1. Estude, se não tiver experiência vivida. Sem entender a questão, será impossível orientar os filhos

Numa sociedade racista, escreveu James Baldwin, a inocência —ou ignorância, em português claro— constitui o crime. É preciso buscar entender o que é racismo, seu papel na construção da sociedade brasileira e a maneira como ele opera; também o que é antirracismo e como ter atitudes antirracistas em casa e no trabalho. Algumas sugestões de leitura básica:

Racismo Estrutural, do Silvio de Almeida (Editora Pólen Livros)

Como Ser Antirracista, de Ibram X. Kendi (Alta/Cult editora)

Os livros da Djamila RibeiroPequeno Manual Antirracista (Editora Companhia das Letras), há meses na lista dos mais vendidos, é uma ótima introdução ao tema);

Os livros da antropóloga Lilia Schwarcz sobre história do Brasil.

Como diz Ibram X. Kendi, não existe atitude não-racista; ou se tem atitudes racistas ou antirracistas, pois não há neutralidade nesse jogo perverso em que vivemos de exclusão, silenciamento e subalternização. E como ele define racismo? Uma espécie de casamento entre políticas racistas e ideias racistas, que produzem e normalizam as desigualdades raciais —nem precisamos desfilar as desigualdades raciais no que tange acesso a direitos básicos como saúde e educação, brutalidade policial, violência urbana, mundo corporativo etc. Já antirracismo é um conjunto de políticas antirracistas que conduzem a equidade racial e são baseadas em ideias antirracistas.

Similarmente, ou criamos nossos filhos para derrubarem ideias racistas ou para, de maneira culposa ou dolosa, reproduzirem o status quo de exclusão, silenciamento e subalternização.

 

2. Aumente o acervo de imagens de pessoas negras em papel de protagonismo para os seus filhos.

Sabemos que as crianças estão o tempo todo decodificando o mundo ao redor e aprendendo com ele. Como uma névoa ao nosso redor, que às vezes é espessa e outras vezes é imperceptível, a branquitude como padrão está na linguagem do cotidiano. Nos livros, fotografias, obras de arte e filmes aos quais seus filhos têm acesso direto, ou que veem dispostos pela casa, há pessoas negras mostrando sua agência e potência?

Neste ano, resolvemos investir em arte brasileira feita por artistas negros —desde reproduções, prints, pôsteres e fotografias de estreantes a originais a preços mais acessíveis. Um privilégio, claro; mas escolhemos usar nosso privilégio para diversificar esse catálogo de imagens ao nosso redor.

Algumas obras podem ter impacto mais imediato em como nossos filhos veem o mundo e seus pares, como a poesia do cotidiano de Robinho Santana —minha filha de 3 anos escolheu uma belíssima pintura a óleo de uma mulher negra em uma cadeira na calçada de casa; ou a subversão de Mulambo, que em algumas obras transforma jovens periféricos em figuras centrais e destemidas. Outras deverão ir formando o imaginário dos nossos filhos aos poucos e ao longo dos anos, como o questionamento que Rosana Paulino faz sobre o genocídio negro na série Raízes Tropicais; o heroísmo na bela série A Invenção da Liberdade, de Tiago Sant’Ana; a crítica à criminalização do corpo negro na obra poderosa de Eder Oliveira. Também se somam fotografias que exaltam a beleza e excelência negras, assinadas por Walter FirmoEdgar AzevedoRenan Benedit.

Além disso, tentamos treinar o olhar também por meio dos brinquedos. Quase todas as bonecas aqui em casa são negras com diversas tonalidades de cor de pele e texturas de cabelo —afinal, como diz Sueli Carneiro, não é só a branquitude que é diversa e multicromática. Há pequenos negócios especializados em bonecas negras, como o Preta Pretinha e o Era Uma Vez o Mundo; comprar deles, e não apenas em grandes redes com pouca diversidade na oferta, também é apoiar a existência de pequenos empreendimentos tão necessários. Outra coisa que introduzimos aqui em casa, silenciosamente, é massinha de modelar com diversas tonalidades de cor de pele, uma edição da Faber Castell. Então, ao fazer pessoinhas de massinha, podemos trazer diversidade também.

Por fim, literatura infantil talvez seja a grande aliada. Tão aliada que ganha um tópico só para ela.

 

3. Leia para seu filho uma literatura efetivamente diversa e antirracista.

Literatura infantil tem sido um grande investimento aqui em casa —tanto que virei @aloucadoslivrosinfantis. Uma proporção crescente corresponde ao que chamaria de literatura infantil antirracista. Na nossa casa, ela se divide mais ou menos em três categorias de livros: os que têm crianças negras como protagonistas da história, mas cuja temática nada tem a ver com racismo ou diversidade; os que focam a autoestima das crianças negras; e os que se referem diretamente ao tema de diversidade, de maneira honesta e delicada.

Os do primeiro tipo costumam ser meus preferidos, pois respeitam o direito da criança negra à fabulação e a ser protagonista dos seus próprios espaços de imaginação. Um exemplo, apenas para ficar claro sobre o que estou falando, é Ada Batista Cientista, de Andrea Beaty, no Brasil publicado pela Intrínseca. Ada é uma menina questionadora e curiosa, que aplica uma espécie de “método científico infantil” aos problemas que quer resolver —como, por exemplo, um fedor de origem desconhecida. Outro exemplo do qual gosto particularmente é Homemade Love, da bell hooks (infelizmente sem edição no Brasil), sobre uma garota amada e cuidada pelos pais, que à noite não tem medo de dormir porque se lembra dos abraços carinhosos ao longo do dia.

A segunda categoria traz joias como Meu Crespo É de Rainha, também da bell hooks (Boitatá), e Amoras, do Emicida (Companhia das Letrinhas). São lindos e potentes, e costumo presentear filhos de amigos não-negros com livros como esses. Afinal, a beleza e potência do corpo negro precisam ser valorizadas por todo mundo, principalmente por quem já é considerado belo e potente de partida.

Por fim, na terceira categoria estão livros como A Cor de Coraline, de Alexandre Rampazo (Rocco Pequenos Leitores), que começa com um pedido de um amigo à amiga: me empresta o lápis cor de pele? A partir daí há uma reflexão, em meio a cores e imaginação, sobre o que seria essa tal “cor de pele única”.

Um capítulo à parte é a lista de ouro de escritores que amamos como adultos e que têm livros infantis belíssimos e inspiradores. Para nomear alguns: a já citada bell hooks, com vários títulos tão revolucionários quanto seus livros para adultos; e Maya Angelou, Toni Morrisson, James Baldwin… Um deles também é Ibram X. Kendi, que transformou o seu Como se Tornar Antirracista em uma versão para pequenos. E este é o próximo tópico.

 

4. Dialogue com seus filhos, pois estudos mostram que não é verdade que eles “não veem raça”

Em Bebê Antirracista, ainda sem tradução no Brasil, Ibram X. Kendi escreve que “como ensinamos nossos filhos a serem gentis mesmo antes de eles entenderem o que é ser gentil, devemos ensinar nossos filhos a serem antirracistas antes de eles entenderem o que significa ser antirracista”. O livro inteiro, apesar das lindas ilustrações de Ashley Lukashevsky, é mais para pais do que para bebês e traz um excelente guia para ter conversas com crianças pequenas.

Ele sugere um roteiro que começa por tentar entender como seu filho pensa sobre o tema (“quando você pensa num astronauta, professor, qual é a aparência deles?”; “como se parecem os seus amigos e os amigos da mamãe e do papai?”). Logo, parte-se para ajudar a criança a entender que as pessoas não são tratadas do mesmo jeito e que há políticas sociais que atrapalham alguns —usamos aqui em casa como exemplo uma das imagens do livro que mostra duas pessoas subindo uma escada; a de uma delas está quebrada. Por fim, o cuidador compartilha suas próprias experiências com o tema e traz a ideia da abordagem não essencialista, ou de mindset de crescimento, como diria Carol Dweck.

 

5. Seja uma voz ativa na sua comunidade.

Não creio que uma educação antirracista seja uma tarefa individual de cada família nuclear; ela precisa ser um esforço conjunto, que inclui família estendida, rede de amigos e, claro, escola.

Passa por pressionar, por exemplo, que a escola na qual os seus filhos estudem tenha cota para crianças de baixa renda e negras e que seu corpo discente seja diverso. Adicionalmente, de que maneira a escola obedece à Lei 10.639/03, que regulamenta o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana? Algumas escolas fazem questão de trazer referências à cultura oral brasileira, às vezes até em contraposição a certos estrangeirismos (exemplo: Dia do Saci versus Halloween). De que maneira a escola fala sobre Saci, “Negrinho” do Pastoreio e povos indígenas —(a tentação do racismo, nesses casos, é muito grande)? E quanto à literatura infantil clássica abertamente racista, usa ainda no seu currículo?

Da mesma forma, o quanto ainda calamos frente a comentários diretamente ou veladamente racistas proferidos por familiares e amigos na frente dos nossos filhos?

Um estudo com mães não-negras e seus filhos mostra que por mais que cuidadores tentem silenciar sobre o tema, eles estão o tempo todo dando sinais às crianças: há correlação forte, por exemplo, entre a diversidade no grupo de amigos das mães e o nível de atitudes racistas das crianças.

Enfim, o desafio é grande; mas precisamos nos engajar diretamente em criar uma sociedade antirracista, e nossos filhos serão atores fundamentais nessa virada de chave. Não haverá uma sociedade mais justa se as próximas gerações não forem mais bem-educadas do que a nossa nesse tema. Temos um papel fundamental como pais e cuidadores. Usemo-lo.

 

Natalia Paiva é mãe da Serena (3 anos e meio) e do Martín (7 meses). Trabalha com políticas públicas e tecnologia. Como hobby, compartilha livros infantis em @aloucadoslivrosinfantis.

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