“Foram necessários a pandemia, a geopolítica e o fenômeno Bolsonaro para a mídia ameaçar acordar. Se acordou, só o tempo dirá”. Recomendamos o artigo de Luis Nassif, publicado pelo GGN
A pandemia e a guerra da Ucrânia trouxeram de volta uma velha prática virtuosa da mídia: o respeito pela ciência. Especialistas em saúde e geopolítica foram entrevistados em uma quantidade, qualidade e variedade inéditas dentro do padrão discurso único que marcou a imprensa a partir do século 21.
Recentemente, em entrevista ao GGN, o filósofo Vladimir Safatle anotava a fase terraplanista da mídia, de divórcio com a academia. Frequentemente eram entrevistados acadêmicos de verdade (pesquisadores, autores de teses), muitas vezes em cima de temas relevantes. Ao lado das reportagens, matérias didáticas explicando para leigos os temas tratados.
A partir de determinado momento, houve o divórcio. A mídia passou a criar os intelectuais de papel, alinhados com suas teses, formuladores de discursos únicos.
Analiso esse fenômeno em meu livro “O caso Veja”. Junto com o padrão de notícias falsas e de assassinato de reputação, Roberto Civita trouxe do padrão Rupert Murdoch o conceito da guerra cultural. Esse mesmo padrão foi aplicado na Argentina, pelo Clarin.
Tratava-se de destruir a imagem pública de intelectuais, escritores e artistas de algum modo identificados com a esquerda. E criar um novo Olimpo de celebridades. Nem unanimidades como Chico Buarque escaparam dessa caça às bruxas.
Criou-se um circuito curioso. Como a estratégia consistia em criar uma nova elite intelectual, chefes de redação, de escassa produção intelectual, passaram a se candidatar ao posto. Diretor da Globo, Ali Kamel lançava um livro que recebi duas páginas de resenha na Veja, era apresentado como uma das obras da década pela Época, aparecia nos programas literários da Globonews. Por sua vez, Mário Sabino, da Veja, lançava um livro pela Editora Record, recebia duas páginas da Veja, alterava a lista dos mais bem vendidos para poder entrar em Não-Ficção e a Record espalhava que o romance fazia sucesso em vários países. Bastava uma consulta à Amazon para perceber que o único país que publicara o romance era o Brasil. E Diogo Mainardi era saudado, por Veja, como o “guru do Leblon”.
Esse show de horrores prosseguiu por mais algum tempo, mas acabou desmoralizado pela blogosfera que já fazia sua luta de guerrilhas. Ajudei nesse desmonte publicando, em blog, “O caso de Veja“.
Quando escrevi sobre essa estratégia, anos atrás, recebi a seguinte mensagem da vítima mais ilustre dessa sanha macarthista: Chico Buarque.
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Essa guerra cultural transformou a mídia em uma pré-sala do ambiente de redes sociais que se formaria nos anos seguintes, seja pelo discurso de ódio, pela utilização de notícias falsas, e pelo terraplanismo amplo, criando uma geração de comentaristas palpiteiros, incapazes de aprofundar as discussões, em uma quadra de profundas transformações econômicas e sociais.
Foi ignorada a profícua discussão sobre os novos rumos da teoria econômica, políticas sociais no estado da arte foram tratadas como populismo rasteiro, financiamento à exportação e a ampliação do mercado brasileiro de engenharia transformada em caso policial.
Foram necessários a pandemia, a geopolítica e o fenômeno Bolsonaro para a mídia ameaçar acordar. Se acordou, só o tempo dirá.