Como ninguém, Quino traçou um risível inventário do ridículo e da truculência que reina no planeta. Seus cartuns, por décadas publicados em jornais e revistas e reunidos em livros e álbuns, são um catálogo gracioso das humanidades e desumanidades do homo sapiens.
Como desenhista, Quino impressiona por dois aspectos gráficos extraordinários: o perfeccionismo do traço e o extremo capricho na execução de cada desenho. Quino é sempre incansável ao realizar um cartum: ele concebe a cena, constrói um cenário imenso ao redor e, muitas vezes, o centro de tudo é um mero detalhe que escapa ao primeiro olhar. E na maioria das vezes, essa é a forma do Quino cativar o leitor: ter que procurar a graça por entre mil detalhes. E depois de passear por dezenas de objetos (como ele faz caber tanta quinquilharia num quadrinho?) e um grupo (às vezes uma multidão) de personagens, o leitor encontra, afinal, o motivo central da piada. E aí o leitor é iluminado pela arte sem igual do maior cartunista argentino (celeiro de cartunistas geniais), um dos maiores do mundo. Seus desenhos são todos, sem exceção, primorosos. Desde o cartum imediato, com a piada evidente, até os cartuns com deslumbrantes grandes planos, da mão de Quino escorrem linhas sempre harmoniosas. Mesmo quando se ocupa de personagens desagradáveis, vilões ou trogloditas, o traço arredonda tudo e todos, e o desenho encanta. Seu talento na concepção dos cartuns se sustenta por uma expressão visual deliciosa. Quino é um fotógrafo cuja câmera é a caneta: ao traçar o que vai na sua mente, cria uma imagem exata e completa do que seria uma cena real. E temos que bater palmas para o estilo gráfico: nunca as curvas foram tão obedientes a um cartunista quanto com Quino.
Como filósofo, Quino não deve nada a qualquer outro pensador. Ao se ocupar das graças e desgraças da vida humana, Quino revela elevado nível de compreensão da natureza humana. É um sensível – ora compassivo, ora implacável – comentarista do comportamento individual ou grupal. E faz isso sem jamais perder o senso de humor, que nele ressalta pelo refinamento, tanto nas abordagens como no tratamento visual. Ao filosofar enquanto desenhava, Quino criou um vasto panorama da condição humana. Se dedicou tão bem a isso que facilmente alcançava o lirismo. É como diz dele o meu amigo Edgar Vasques (chargista, cartunista, quadrinista e caricaturista, pai do Rango): Qual é a diferença entre poeta e cartunista? Sei lá, são várias… mas a semelhança eu sei: é Quino!
Como ativista, Quino é um combatente solitário: sua trincheira é o estúdio, sua área de atuação é a prancheta. E dela parte em todas as direções para tentar influir na sociedade. Qualquer cartum seu está sempre a serviço do próprio engajamento do artista. Com seus lápis e canetas, Quino aponta para as desigualdades sociais, a selvageria do capitalismo, os condicionamentos do sistema, a exploração do meio ambiente, os desmandos dos governantes, os abusos dos mais fortes e mais endinheirados, e por aí vai um extenso rol de alvos. Mas o ativismo de Quino tem seus favoritos temáticos: a ditadura, o ataque às liberdades e aos direitos humanos, o nazismo e o fascismo. Por isso é difícil lembrar, nos seus cartuns, algum humor gratuito e inconsequente.
Como humanista, Quino cresce mais ainda: seja como artista ou como cidadão, Quino é um defensor público e notório da democracia, da justiça, da ética, do respeito à vida. Enfim, um cartunista que usa seu inigualável humor para promover valores. Sem ser careta, panfletário, piegas ou maniqueísta.
Para preencher a lacuna do seu humor único, seriam precisos rios de nanquim, jazidas de grafite. É duvidoso que surja um outro Quino (sempre é possível, claro: antes de Quino não havia Quino), um talento sem comparação. Até lá, a falta da sua graça e da sua genialidade ficará aberta: eterno grand canyon na memória dos milhões e milhões de fãs e admiradores mundo afora.
(A 2ª edição do jornal de humor Micuim traz homenagem ao Quino em página dupla. Acesse aqui)