Negros, índios, mulheres com o protagonismo. Um carro alegórico onde a princesa Isabel e o Padre Anchieta pisam sobre ossos com a glória da história oficial. Outra imagem onde Dom Pedro I é retratado como um presidiário, em contrapartida com Dandara e Zumbi, Sepé Tiarajú e Marielle Franco. E ainda, as mulheres no "bloco da força", aquela turma que empurra as alegorias na passarela. Foi lindo, e a Estação Primeira de Mangueira é favorita do público e da crítica — o que nem sempre corresponde ao julgamento dos critérios do concurso do Carnaval.
Foi lindo e, para quem realmente ama o Carnaval, revigorante, mas não inédito. Tampouco uma espécie de "renascimento" de desfiles críticos. Quem realmente conhece os barracões e as fervilhantes ideias dos carnavalescos, sabe que o protesto, e principalmente a contestação à história oficial, são marcas registradas da festa de Momo. E uma marca do Brasil que não cabe nos livros, em geral, embranquecidos. Talvez a História para Ninar Gente Grande, da Mangueira, impressione alguns, e é compreensível. O país, pela completa ausência de um estadista na presidência, viverá quatro anos neste cabo de guerra da lacração. E ela ultrapassa, em muito, a Sapucaí.
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O grito que se ouviu, e se cantou em enredos, como o da Mangueira, ou do Bode Ioio, do Paraíso do Tuiuti, ecoou nas festas do país inteiro, virou hashtag com #BolsonaroVTNC. Mas este não foi o maior mérito deste carnaval carioca.
O mais legal foi ver o público novamente interessado nos mergulhos fantásticos às histórias paralelas do país. Enquanto um presidente alheio à maior festa popular do país desandou a postar bobagens no Twitter, como a questão do "excesso" de investimentos na educação, a cultura das comunidades levou ao público de massa, por exemplo, um pedaço da história do Reino de Oyo, com seu rei Shangô.
História que deveria ser essencial nas escolas, mas nem consta na bibliografia obrigatória o ensino da história africana. Uma pena, porque, como mostram ano após ano, as escolas de samba, está intimamente ligada à formação deste país.
Desfile de escola de samba sempre é uma forma de protesto. Seja contra versões oficiais da história ou contra quadros sociais do nosso dia a dia. E antes que a turma da lacração pense que é perseguição, a Tuiuti provavelmente perderá pontos fundamentais na apuração porque, na concentração, ainda estava montando o seu último carro. E a harmonia, em certo ponto, foi para as cucuias também. Não é perseguição, é só o Carnaval.
E como acontece todos os anos, o Carnaval não trouxe à tona só a beleza de discursos cantados e visualmente apaixonantes. Trouxe também o bloco dos hipócritas. Estes, nunca descansam. Pelo Twitter, chamou atenção um em especial. Jornalista, fez relação entre as milícias, a direção da Mangueira, o tráfico de drogas, o jogo do bicho e a homenagem à Marielle. Da sua autoridade, ele decretou que um carnavalesco não poderia expressar essa compaixão à vereadora morta sem uma solução para o crime um ano depois. Ora, é evidente, e inúmeras investigações já provaram isso, que o carnaval carioca é permeado por figuras da contravenção e pelo dinheiro muitas vezes de origem inexplicável. Mas e o carnavalesco com isso?
Pergunto porque, se fosse seguir à risca o que escreveu tal jornalista, ele próprio estaria proibido de tecer comentários contra dinheiro suspeito. Visto que escreve para uma empresa na qual pastores evangélicos erguem castelos sem prestar contas ou pagar impostos por isso. E quem o compartilhou, dando plena razão, aqui pela província, foi um dos proeminentes comentaristas políticos da emissora com os patrões bastante enrolados em investigações por fraudes em impostos. São os mesmos que chamam de doutor e entrevistam dando vivas empresários de grandes redes historicamente sonegadoras de impostos, sob a desculpa de que vão gerar empregos por aqui.
É que o problema dos hipócritas nunca foi o dinheiro que sustenta as escolas de samba. O problema são as caras desdentadas que aparecem no Carnaval. Elas incomodam.
Porque o carnavalesco, assim como o jornalista, não é o cara que bota a mão na sujeira. O fato de uma empresa jornalística ter alguns rabos presos, não tira a isenção do jornalista. E talvez isso, os hipócritas não compreendam. Jornalistas e carnavalescos são trabalhadores com o dom, em comum, de mostrar chagas da sociedade e analisá-las. As escolas de samba e as grandes empresas de comunicação não passam de retratos do Brasil. A diferença é que o teatro do Carnaval dá vida e mexe com os ânimos. Alguns, desgostosos, acusam o golpe.
Foi o que se viu na capital mais triste do Brasil neste período carnavalesco. Depois de ferirem quase à morte os desfiles das escolas de samba, o bloco dos carolas, caretas e conservadores decidiu impedir qualquer manifestação de festa na base da porrada. Esta, sim, uma transformação do Carnaval deste ano. Ao invés de manchetes com cores de avenidas ou blocos, só há espaço para a chatice do trânsito na Freeway. Ao invés dos cânticos engraçados, só sobrou a pancada e as bombas de "efeito moral" em Porto Alegre.
Daria um belo enredo. O Carnaval chegou ao fim.