É um tal de cortar cebolas, tomates, tempero verde… Transformar o corte de acém em pequenos pedaços para por a cozinhar em uma panela de alumínio…
Foi neste ambiente mais ou menos com cheiro de fritura que a nossa personagem começou a falar da sua história, mas antes ainda perguntou se o macarrão escolhido era o ideal para a comilança pretendida.
Gilse Rosane da Silva Castro não conta a idade mas diz sem problemas a data de nascimento, lá em 16 de setembro de 1972, no Hospital Conceição, em Porto Alegre. É mãe da Vitória e mora em Cachoeirinha desde seu “quinto dia útil” de existência. Pelo nome completo nem todas as pessoas sabem quem é nossa personagem neste 20 de março, Dia do Contador de Histórias.
Se falar apenas Rosane Castro, boa parte do meio cultural-educacional-artístico da Região Metropolitana, do Vale do Caí, Região Centro, Litoral Sul, algumas cidades de São Paulo, de Minas Gerais, Rio de Janeiro e de vários outros estados brasileiros logo vai ligar o nome à uma “quase baixinha” que não para nunca. Nem quando está dormindo, garante.
Mas quem é Rosane Castro?
— Sou uma mulher simples, cheia de sonhos – alguns realizados, outros não! – e muito objetiva. Uma mulher que sabe o que quer, muito focada na área profissional, que ama demais uma criaturinha chamada Vitória Castro, e que dedica a maior parte do tempo para pensar no trabalho e na filha. Sou eu, muito prazer!
Com formação em Letras (Literatura Brasileira) na Ulbra de Gravataí, e com pós-graduação em História e Cultura Indígena, em andamento, Rosane conta, enquanto mexe na panela para refogar a cebola picada, que já desenvolveu vários projetos culturais, especialmente em Cachoeirinha e Gravataí, voltados à área da leitura.
— São vários projetos os quais já criei e participei, sendo que alguns deles mantenho até hoje como a Biblioteca Itinerante Griô. E tenho um triciclo que utilizo como uma ferramenta lúdica para aproximar as pessoas dos livros. Coloco os livros e levo às escolas, espaços públicos e onde puder, para que as pessoas – principalmente as crianças – posam dar “uma voltinha” com os livros, porque os livros precisam circular.
Um divã na tenda
Atualmente Rosane Castro – põe mais um pouco de água quente na panela! – está empenhada em tocar e divulgar e promover o projeto Divã de Histórias, de contos curadores.
— São contos que eu leio para as pessoas. Eu as convido a entrarem em uma tenda de nove metros quadrados que remete às tendas árabes, que às vezes tem uma poltrona, ou um divã… Não é para contar histórias para crianças, é para a família: casal com os filhos, mãe com a filha ou filho ou a avó com o neto. Ou as três gerações, vó, filha e netos.
: Em uma tenda “árabe”: história contada não apenas para crianças, mas para as famílias
Depois da leitura de um determinado conto, Rosane Castro propõe uma conversa com as pessoas que a assistiram, com o propósito de resgatar lembranças, contar causos, cada um apresentando um trecho do que traz na memória e que, não fosse provocado, estimulado, cairia naturalmente na vala comum do esquecimento.
A escritora
Com alguns livros publicados, centenas de contos e crônicas, Rosane – agora fritando a carne com a cebola e provando o sal no dorso da mão – diz que sua porção escritora é uma pessoa que está em constante processo de aprendizagem e evolução.
— Sou muito estudiosa enquanto escritora, estou sempre lendo e pesquisando coisas que possam agregar conteúdo, primeiro, sob o ponto de vista pessoal, e depois somar no aspecto profissional. A gente está sempre aprendendo, há muito que aprendermos, então passo todo tempo sendo instigada pelas pessoas através das redes sociais, por documentários ou filmes que acabam me levando à pesquisa sobre coisas que li, ouvi, assisti — detalha.
Bibliografia
São oito livros publicados:
– Menina dos olhos verdes
– Umas formigas
– Histórias ao pé do ouvido
– Histórias do mundo pra todo mundo (com outros contadores)
– Batidas de Okàn
– Vovó Antonieta e as rosas
– Dulcinéia
– Minha mãe é astronauta
: Capas de dois dos livros produzidos por Rosane Castro, enquanto escritora
Sobre o Griô
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O projeto “Biblioteca Itinerante Griô” é uma iniciativa de democratização ao acesso ao livro e à leitura. Através de seu acervo diversificado, mas com foco na literatura afro-brasileira e africana, o projeto se propõe a estimular e oportunizar momentos lúdicos, de criação e vivência, através da literatura, com oficinas, saraus, bate-papos, audiovisual, etc.
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Também oferece aos participantes um momento de reflexão e aprendizado, onde poderão desenvolver, através da prática, a capacidade e a sensibilidade auditiva, oral e escrita.
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A proposta também se caracteriza por apresentar um excelente acervo voltado para a literatura afro-brasileira e africana, com contos, mitos e lendas, servindo como referência de pesquisa, atendendo a comunidade escolar e demais interessados.
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O projeto visa contribuir para a divulgação da Lei n. 10.639/3, que inclui no currículo oficial das escolas a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira.
Para acessar, clique sobre.
A carne já está cozida. É hora de começar a acrescentar tomates para deixar o molho bem vermelho. Rosane nem suja as mãos.
Mas quem é a Rosane contadora de histórias?
— É a Rosane da infância, aquela pessoa que se diverte, que tem muita imaginação, criatividade e brinca o tempo inteiro. Eu contadora de história, sou uma pessoa que se sente viva. Eu me sinto viva!
Hoje ela prioriza contar histórias que escreve – os mais antigos diriam que são histórias de sua “lavra” – mas não abdica daqueles contos da tradição oral e populares. Ela gosta de dizer que “bebe de várias fontes”, referindo-se às histórias de autores póstumos e contemporâneos, mitos ou lendas.
E qual o estilo? Rosane Castro faz mais a linha moça séria, não envereda para o estilo da comédia. Apesar de empregar na contação recursos vocais – entonação, impostação da voz – e do corpo, como trejeitos, movimentos e posturas, tem a preferência por histórias que remetem às questões da afetividade.
A pegada teatral vem do tempo em que Rosane atuou de modo mais dedicado aos palcos, como atriz, por cerca de 10 anos, quando adquiriu as técnicas que instintivamente emprega quando está na frente de uma plateia de atentas crianças, de pais e filhos, contando suas histórias.
— A gente sai do teatro, mas o teatro não sai da gente — diz, levantando a tampa da panela para provar se o molho está bem temperado.
Um conto de Rosane
Clique na imagem e assista a um conto de Rosane Castro, gravado especialmente para os leitores do Seguinte:.
Rosane enche os olhos d’água – e não é mais por causa da cebola! – quando perguntada se contação de histórias é uma forma de ganhar o pão dela de cada dia. Antes de responder, prova o molho. Diz que está bom e começa a colocar o macarrão a cozinhar na água que já está fervente.
— A contação de histórias, hoje, é a minha vida. Já há bastante tempo — fala, pausadamente, com um tom de voz que remete à emoção.
E completa:
— E acho que nem saberia mais viver sem, porque quando a gente se assume contador de histórias, a gente está assumindo uma posição dentro da sociedade. E eu me identifico e me considero, apesar de ainda ter muito o quê aprender e mesmo sem fazer tantas coisas quanto gostaria, como uma contadora de histórias.
: Pose para foto: Rosane Castro em meio a uma turma de alunos após uma contação de histórias
A Rosane chegou ao ápice?
— Não, nunca. Eu faço parte de uma grande roda, sou uma engrenagem neste processo. Por meu trabalho algumas pessoas e eu não saberia quantas exatamente, passaram a viver esta experiência. Não sou mais e nem menos, mas ainda estou longe daquilo que acho que poderia fazer ainda — sentencia.
Jesus contava histórias
Sobre a história da contação de histórias (alerta: a redundância foi proposital!), ela diz que desde o início da humanidade sempre existiu o contador de histórias e que, não fosse ele, muito do que aconteceu há séculos ou milênios não seria do nosso conhecimento por não ter sido transmitido de modo oral em uma época em que a escrita não passava de alguns hieróglifos ou desenhos feitos na parede das grutas.
— Jesus Cristo, sob o ponto de vista cristão, foi um grande contador de histórias — exemplifica, reportando-se às passagens bíblicas e às tantas parábolas
(O que são:
As parábolas de Jesus são narrativas breves, dotadas de um conteúdo alegórico, utilizadas nas pregações e sermões de Jesus com a finalidade de transmitirem ensinamentos.)
Contando por aí
O contador de história não é um ser restrito a um pequeno mundinho. Há contadores de histórias, aos milhares, espalhados em todo planeta e organizados em grupos ou atuando de modo isolado. Em São Paulo, a partir de hoje – em homenagem à data – um grupo está se mobilizando para instituir a semana do contador de histórias.
Em Brasília também já há um movimento capitaneado na Câmara Federal com a intenção de regulamentar a contação de história como atividade profissional.
— É uma profissão e hoje há esse entendimento em muitos meios. E dá sim para viver, financeiramente, desta atividade — garante Rosane.
A área de atuação do contador, hoje, está muito mais centrada no meio educacional, com foco muito acentuado nas séries iniciais, com a finalidade de formar a base de sustentação do futuro adulto através de mensagens com conteúdo cultural, ético e moral.
E há ainda, por exemplo, empresas que buscam no contador de história uma forma lúdica de motivação para seu quadro funcional. É o entendimento de que as pessoas precisam ter momentos para escutar e formar suas próprias imagens, transportando os ensinamentos implícitos à sua atividade cotidiana, familiar ou profissional.
Sem fotos, por favor!
Enquanto termina de dispor pratos e talheres, escorrendo a massa e colocando o grosso molho avermelhado sobre, Rosane chama a filha Vitória à mesa. “Vi”, forma carinhosa de chamá-la, já está vestida para dormir. É noite. Na manhã seguinte ela tem aula cedo. Sem qualquer pintura, sem qualquer penteado mais elaborado, nega-se terminantemente a ser fotografada com a mãe.
Vaidades de uma jovem senhora de quase 15 anos.
: A filha Vitória, prestes a completar 15 anos, apoiadora incondicional do trabalho de Rosane
Quantas são
A conversa com Rosane vai chegando ao fim, afinal, é hora de, literalmente, "matar" a fome.
A única – estudiosa, pesquisadora e que escreve sobre o assunto e suas prórias histórias – contadora de Cachoeirinha revela que na cidade há professoras e bibliotecárias e algumas pessoas ligadas às áreas cultural e educacional que contam histórias “muito bem”. Mas não são contadoras por profissão.
Sobre quantas há em Gravataí, Rosane não sabe precisar o número, mas assegura que é um número expressivo e que vem num crescente porque a demanda tem sido cada vez maior para uma atividade que ganhou maior notoriedade nos últimos 20 anos. Em Porto Alegre há muitos, Canoas, Novo Hamburgo e em quase todas as cidades há os contadores.
E a procura vai além dos já citados meios educacional e interesse de algumas empresas. Rosane revela que já exercitou a contação em festas de aniversário e sabe de quem já atuou em festas de casamento. Óbvio que, daí, o texto é adaptado, geralmente narrando a trajetória de vida de quem está aniversariando, ou o que viveram até aquele momento os noivos que estão casando.
Fim de papo. Hora de jantar…
Ah, e sobre a história de a Rosane cozinhar, é pura contação deste repórter-jornalista metido a entendido na arte de lidar com as panelas.
: Hora de comer, porque apesar de contar histórias, ninguém é de ferro. Bom apetite!