Recomendamos o artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado em sua coluna no UOL
Esta profissão é cruel às vezes e nos obriga a falar de coisas e pessoas de que pretendemos manter distância por motivos morais, éticos, estéticos, civilizacionais em suma — essas coisas próprias do “Homo sapiens sapiens”… Bem, terei de falar sobre o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), o mais votado do Brasil (!), e sua performance criminosa na Câmara dos Deputados, quando pediu para ser chamado de “Nikole”.
Para lembrar: jurisprudência do Supremo estendeu as punições previstas na Lei 7.716, que pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, também aos cometidos em razão de homofobia e transfobia. A decisão foi tomada por 8 a 3 no âmbito de uma ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão). O relator foi o então ministro Celso de Mello.
Assim, até que o Congresso não legisle a respeito, vale também para homofobia e transfobia o que prevê o Artigo 20 da Lei 7.716:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional:
Pena: reclusão de um a três anos e multa”
Vamos refrescar a memória de Nikolas: no dia 12 de janeiro, foi publicada no Diário Oficial da União a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Lei 14.532, de 2023, aprovada pelo Congresso, que tipifica como crime de racismo a injúria racial, que teve a pena aumentada: de um a três anos de reclusão para de dois a cinco anos.
O deputado, a exemplo desses tipinhos surgidos nas redes sociais, tem a língua comprida. O racismo é entendido como um crime contra a coletividade; a injúria é direcionada a indivíduos. O que vale para a questão racial, insista-se, vale para homofobia, transfobia e outras formas de discriminação também no que respeita à injúria.
Abismo
Ver o tal com a sua peruca, reduzindo pessoas trans à caricatura e ao grotesco; transformando em alvo de sua baba hidrófoba e de seu deboche o grupo que está, hoje, entre os mais vulneráveis do país; assistir àquela performance que não tem outro objetivo que não a ofensa, o ataque gratuito, a manifestação de ódio; constatar, no ambiente por excelência da representação política, que é a Câmara, que um integrante de um dos Poderes da República, com sua pantomima, tenta expropriar da cidadania milhares de pessoas apenas porque são quem são, violando aquele que é um fundamento do Parlamento… Bem, isso tudo indica, para lembrar um filósofo, que o Brasil olhou o abismo e que o abismo olhou para o Brasil. Chegamos perto de despencar. Ainda não é certo que não aconteça.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), censurou publicamente a pantomima criminosa de Nikolas, o que não deixa de ser um alento. A deputada Tábata Amaral (PSB-SP) reagiu de pronto e anunciou que iria se articular — e isso está em curso — para levar esse moleque irresponsável ao Conselho de Ética. O pedido de cassação já foi protocolado por PSOL, PSB, PDT e Rede. PT e PCdoB aderiram à iniciativa.
Depois da reprimenda pública feita por Lira, o mais provável é que o talzinho receba alguma punição. Mas todos sabemos que é praticamente impossível que venha a ser cassado. A tanto não se chegará. E por um conjunto de fatores: corporativismo; entendimento pervertido do quer seja imunidade parlamentar; peso que têm hoje os reacionários na Casa etc.
Pode piorar
E aí está a questão. Se esse Nikolas receber como punição uma simples advertência, não duvidem: o beber vai lhe assanhar a sede, porque isso o manterá, como já acontece agora, à flor do noticiário. E era precisamente o que ele queria. E é precisamente o que ele conseguiu. Vocês acham que está chateado com a repercussão? Que ele deu bola para o pito que levou de Lira? Que ele está minimamente preocupado com as críticas de que foi e será alvo, incluindo esta? Claro que não! E obviamente não escrevo para tentar emendá-lo. O objetivo deste texto é outro.
Nikolas, anotem aí, vai fazer de novo. E de novo. E de novo. A menos que seja parado pelo Ministério Público Federal e pelo Supremo. No que depender do andamento das coisas na Câmara, em razão dos fatores citados, ele vai é se robustecer. Fala, acrescente-se, o que seu público nas redes sociais quer ouvir. Lá, ele está sendo tratado como herói, como corajoso, como o que não tem medo de nada.
Hora da PGR
Cabe à Procuradoria Geral da República pedir autorização ao Supremo para que esse cara seja investigado. O outro caminho é a apresentação de uma notícia-crime ao STF, o que a deputada Erika Hilton (PSOL-SP), uma mulher trans, anunciou que fará. Ainda assim, a PGR tem papel central no caso: será ela, no fim das contas, a decidir, caso se abra um inquérito, se vai ou não oferecer denúncia contra o transfóbico.
Não se deve dar importância a Nikolas? Pois é… Eu me lembro de um biltre que ficou 27 anos na Câmara dos Deputados a dizer indignidades e a proferir, impunemente, discursos criminosos. Ninguém apostava que suas falas fascistoides o levassem muito longe, além do nicho para o qual falava. A emergência das redes sociais e a fascistização da política, liderada pela Lava Jato, o conduziram à Presidência. As agressões de Bolsonaro ao Código Penal não começaram em 2018. De tolerância em tolerância, eis a beira do abismo.
Nikolas não será cassado pela Câmara. Ele tem de ser processado por seu crime. Condenado, perde o mandato. Cabe ao Ministério Público Federal, num primeiro momento, dizer se o espaço da representação política é compatível com a pregação do ódio.