“Afinal, estamos todos profundamente atolados no espectro do metaverso, onde as coisas são o oposto do que parecem ser”. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, publicado pelo The Saker e traduzido por Patricia Zimbres para o 247
Veloz, mas não furioso, o Sul Global pisa no acelerador. O principal resultado da cúpula BRICS+ realizada em Pequim, bem diferente do G7 dos Alpes bávaros, é que tanto o Irã, do Oeste Asiático, quanto a Argentina, da América do Sul, candidataram-se oficialmente a ingressarem no BRICS.
O Ministério das Relações Exteriores iraniano ressaltou que o BRICS traz “um mecanismo muito criativo de amplos aspectos”. Teerã, um parceiro muito próximo a Pequim e Moscou – já havia realizado “uma série de consultas” sobre essa candidatura: os iranianos estão confiantes de que ela irá “acrescentar valor” ao BRICS expandido.
E dizem que a China, a Rússia e o Irã estão tão isolados. Bem, afinal, estamos todos profundamente atolados no espectro do metaverso, onde as coisas são o oposto do que parecem ser.
O fato de Moscou teimar em não seguir o Plano A de Washington, que é começar uma guerra pan-europeia, vem abalando profundamente os nervos atlanticistas. De modo que, logo em seguida à cúpula do G7, realizada, de forma muito significativa, em um sanatório nazista, entra em cena a OTAN, paramentada para a guerra da cabeça aos pés.
Portanto, sejam bem-vindos a um show de atrocidades, consistindo na total demonização da Rússia definida como a suprema “ameaça direta”; a promoção do Leste Europeu à condição de “forte”; uma torrente de lágrimas derramadas sobre a parceria estratégica Rússia-China; e, como bônus extra, a China sendo tachada de “ameaça sistêmica”.
É isso aí: para o combo OTAN/G7, os líderes do mundo multipolar emergente, bem como as grandes partes do Sul Global que desejam ingressar nesse mundo, são uma “ameaça sistêmica”.
A Turkiye, sob o Sultão da Ginga – Sul Global em espírito, artista da corda bamba na prática – conseguiu literalmente tudo o que queria em troca de magnanimamente concordar com que a Suécia e a Finlândia abrissem caminho para serem absorvidas pela OTAN.
Façam suas apostas quanto ao tipo de mutretas as marinhas da OTAN irão aprontar no Báltico contra a Frota Báltica Russa, a serem seguidas por diversos cartões de visita distribuídos pelo Sr. Khinzal, pelo Sr. Zircon, pelo Sr. Onyx e pelo Sr. Kalibr, capazes, é claro de aniquilar qualquer movimentação da OTAN, incluindo seus “centros de decisão”.
Veio como uma espécie de alívio cômico perverso o lançamento pelo Roscosmos de um conjunto de divertidíssimas imagens de satélite apontando com precisão as coordenadas desses “centros de decisão”.
Os “líderes” da OTAN e o G7 parecem estar gostando de encenar um vagabundíssimo jogo de tipo ‘tira incompetente’/’tira palhaço’. A cúpula da OTAN disse ao comediante cheirador Elensky (lembrem-se, a letra Z agora é proibida) que a operação policial russa de forças combinadas – ou a guerra – tem que ser “resolvida” militarmente. A OTAN, portanto, continuará a ajudar Kiev a lutar até o último ucraniano bucha-de-canhão.
Em paralelo, no G7, o Primeiro-ministro alemão Scholz foi solicitado a especificar que “garantias de segurança” seriam fornecidas ao que restar da Ucrânia após a guerra. A resposta do sorridente primeiro-ministro: “Sim… eu poderia (especificar). E saiu de fininho.
O iliberal liberalismo ocidental
Mais de quatro meses após o início da Operação Z, a zumbificada opinião pública ocidental esqueceu por completo – ou ignora de propósito – que Moscou passou os últimos meses de 2021 exigindo uma discussão séria sobre as garantias de segurança com força de lei oferecidas por Washington, com ênfase no fim da expansão da OTAN rumo a Leste e em um retorno ao status quo de 1997.
A diplomacia falhou, uma vez que Washington respondeu com uma não-resposta. O Presidente Putin deixou claro que o que viria a seguir seria uma reposta “tecnomilitar” (que acabou sendo a Operação Z) enquanto os americanos avisavam que isso poderia desencadear sanções maciças.
Contrariamente aos desejos irrealistas do Dividir para Governar, o que ocorreu após 24 de fevereiro só fez solidificar a sinergia da parceria Rússia-China – e seu círculo expandido, em especial no contexto dos BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Como observou Sergey Karaganov, chefe do Conselho Russo de Política Externa e Defesa, ao início deste ano, “a China é nosso amortecedor estratégico (…) Sabemos que em qualquer situação difícil, podemos contar com ela para apoio militar, político e econômico”.
Essa ideia foi detalhadamente traçada para todo o Sul Global no marco histórico que foi a Declaração Conjunta sobre a Cooperação no Início de uma Nova Era, de 4 de fevereiro – que incluiu a aceleração da integração da Iniciativa Cinturão e Rota e da União Econômica Eurasiana, concomitante à harmonização da inteligência militar no âmbito da OCX (Incluindo o Irã, o novo membro pleno), as principais pedras angulares do multipolarismo.
Compare-se isso aos sonhos molhados do Conselho de Relações Exteriores ou outros delírios de “estrategistas” de poltrona do “maior think tank nacional na área de segurança”, cuja experiência militar limita-se a negociar uma lata de cerveja.
Isso nos torna saudosos daqueles tempos de análises sérias, quando o falecido e grande Andre Gunder Frank publicou “um artigo sobre o tigre de papel” (a paper on the paper tiger), examinando o poderio americano na encruzilhada do dólar de papel e do Pentágono.
Os britânicos, com seus melhores padrões educacionais de tradição imperial, ao menos pareciam ter um certo grau de compreensão de que Xi Jinping “abraçou uma variante do nacionalismo integral não muito diferente das que surgiram na Europa do entre-guerras, enquanto Putin empregava com grande habilidade métodos leninistas para ressuscitar como potência global uma Rússia enfraquecida”.
Mas a noção de que “ideais e projetos originários do Ocidente iliberal continuam a plasmar a política global” é pura bobagem, uma vez que Xi se inspira em Mao tanto quanto Putin se inspira em diversos teóricos eurasianistas. O importante é que no processo de o Ocidente mergulhar em um abismo geopolítico, “o liberalismo ocidental se tornou, ele próprio, iliberal”.
E pior que isso: ele se tornou totalitário.
Mantendo refém o Sul Global
O G7 vem oferecendo à maior parte do Sul Global um coquetel tóxico de inflação maciça, aumento de preços e dívida dolarizada fora de controle.
Fabio Vighi mostrou de forma brilhante que “o propósito da emergência ucraniana é manter ligada a máquina de imprimir dinheiro e culpar Putin pelo estado desastroso da economia mundial”. O objetivo da guerra é exatamente o oposto daquele que nos fazem acreditar. Não se trata de defender a Ucrânia, mas de prolongar o conflito e alimentar a inflação na tentativa de desativar o risco cataclísmico no mercado da dívida, que se alastraria rapidamente por todo o setor financeiro”.
E se puder piorar ainda mais, vai piorar. Nos Alpes bávaros, o G7 comprometeu-se a encontrar “maneiras de limitar o preço do petróleo e do gás russos”: se isso não funcionar com os “métodos de mercado”, então “meios serão impostos pela força”.
Uma “indulgência” do G7 – o neo-medievalismo em ação – só seria possível se um potencial comprador de energia russa concordar em firmar um acordo quanto ao preço com representantes do G7.
O que isso significa na prática é que o G7 provavelmente irá criar um novo órgão para “regular” o preço do petróleo e do gás, subordinado aos caprichos de Washington: para todos os fins práticos, uma forte guinada no sistema pós-1945.
O planeta inteiro, em especial o Sul Global, seria feito refém.
Enquanto isso, na vida real, a Gazprom está indo de vento em popa, ganhando tanto dinheiro com as exportações de gás para a União Europeia quanto ganhou em 2021, embora enviando volumes muito menores.
A única coisa que este analista alemão acerta é que, caso a Gazprom fosse obrigada a cortar o fornecimento de forma definitiva, haveria “a implosão de um modelo econômico que depende excessivamente das exportações industriais e, portanto, da importação de combustíveis fósseis baratos. A indústria responde por 36% do consumo alemão de gás”.
Pensem, por exemplo, na BASF sendo obrigada a parar a produção da maior indústria química do mundo em Ludwigshafen. Ou no CEO da Shell afirmando que é absolutamente impossível substituir o gás russo fornecido à UE pelos gasodutos com o GNL (americano).
A implosão que temos pela frente é exatamente o que os círculos neocon/neoliberalcon de Washington pretendem – retirar da arena comercial mundial um poderoso concorrente (ocidental). O que é realmente assombroso é que a Equipe Scholz não se dá conta do que está acontecendo.
Praticamente ninguém se lembra do que aconteceu no ano passado, quando o G7 fingiu estar tentando ajudar o Sul Global. A iniciativa foi batizada de BuildBackBeterWorld (B3W). “Projetos promissores” foram apontados no Senegal, em Gana, e houve “visitas” ao Equador, Panamá e Colômbia. O governo do Boneco de Teste de Colisão ofereceu “todo o espectro” de instrumentos financeiros americanos: participação acionária, garantias de empréstimos, seguros políticos, dotações, assessoria técnica em clima, tecnologia digital e igualdade de gêneros.
O Sul Global não se deixou impressionar. A maior parte dele já havia se juntado à Iniciativa Cinturão e Rota. O B3W colapsou com um gemido.
Agora a União Europeia vem promovendo um novo projeto de “infraestrutura” para o Sul Global, batizado de Global Gateway (Portal Global), oficialmente apresentado pela Führer da Comissão Européia (CE), Ursula von der Leyen e – surpresa! – ligada ao fracassado B3W. Essa é a “resposta” ocidental à ICR, demonizada como sendo – o que mais? – “uma cilada da dívida”.
A Global Gateway, em tese, desembolsaria 300 bilhões de euros em cinco anos; a CE entraria com apenas 18 bilhões do orçamento da UE (ou seja, com dinheiro dos contribuintes europeus), com a intenção de conseguir 135 bilhões de euros em investimentos privados. Nenhum eurocrata foi capaz de explicar a diferença entre os 300 bilhões anunciados e os esperançosos 135 bilhões.
Paralelamente, a CE vem dobrando as apostas em sua fracassada agenda de Energia Verde – culpando, é claro, o gás e o petróleo. Frans Timmermans, chefão do clima na União Europeia, pronunciou uma verdadeira pérola: “Se o green deal tivesse ocorrido cinco anos antes, estaríamos menos dependentes dos combustíveis fósseis e do gás natural.
Bem, na vida real a União Europeia mantém-se firme no rumo de se tornar uma terra arrasada e totalmente desindustrializada até 2030. Energia Verde ineficiente, seja solar ou eólica, é incapaz de oferecer uma fonte energética estável e segura.
O tipo certo de ginga
É duro escolher quem é o personagem mais canastrão do jogo “tira bom/tira ruim” da NATO/G7. Ou o mais previsível. Foi isso que publiquei sobre a cúpula da OTAN. Não agora, mas em 2014, oito anos atrás. A mesma demonização, repetida indefinidamente.
E, aqui também, se pode piorar é bem provável que piore. Pensem no que restou da Ucrânia – principalmente a Galícia do Leste – sendo anexada ao sonho molhado da Polônia: a nova versão do Intermarium, indo do Báltico ao Mar Negro, agora apelidada de “Iniciativa dos Três Mares” (com o acréscimo do Adriático) e compreendendo 12 estados-nação.
O que isso implica no longo prazo é o colapso interno da UE. A oportunista Varsóvia apenas lucra financeiramente com a generosidade do sistema de Bruxelas ao mesmo tempo em que acalenta seus próprios planos hegemônicos. A maior parte dos “Três Mares” vai acabar abandonando a União Europeia. Adivinhem quem irá garantir sua “defesa”: Washington, por meio da OTAN. Alguma outra novidade? O conceito do novo Intermarium data do tempo do falecido Zbig “Grande Tabuleiro”” Brzezinski.
Então, a Polônia sonha em se tornar a líder do Intermarium, seguida pelos “Três Anões Bálticos”, por uma Escandinávia ampliada mais a Bulgária e a Romênia. Seu objetivo parece vir diretamente da Comedy Central: reduzir a Rússia ao status de estado-pária – e então toda a pantomima de sempre: mudança de regime, a derrubada de Putin e a balcanização da Federação Russa.
A Grã-Bretanha, aquela ilha irrelevante, ainda investida em ensinar aos novatos americanos como ser um Império, irá adorar. Alemanha-França-Itália bem menos. Perdidos na selva, os euroanalistas sonham com um Quad Europeu (com a Espanha), replicando o esquema Indo-Pacífico, mas no final das contas tudo vai depender de para que lado vai a Alemanha.
E então há aquele imprevisível bastião do Sul Global liderado pelo Sultão da Ginga: a recentemente renomeada Turkiye. Um neo-otomanismo brando parece estar a todo o vapor, ainda expandindo seus tentáculos dos Bálcãs e da Líbia à Síria e a Ásia Central. Evocando a era de ouro da Sublime Porta, Istambul é o único mediador sério entre Moscou e Kiev. E está cuidadosamente cuidando dos mínimos detalhes do processo de integração eurasiana atualmente em curso.
Os americanos estavam prestes a tentar mudança de regime contra o Sultão. Agora eles se veem forçados a ouvi-lo. E aí vai uma lição geopolítica séria para todo o Sul Global: uma “ameaça sistêmica” não quer dizer nada se você tem o tipo certo de ginga.