coluna do silvestre

Quem fraturou minha clavícula, os militares?

Da série me cortem os tubos!

Me aguentem ou…

No chamado tempo da ditadura, ou do golpe militar, do governo dos generais, que tanto se fala por estas épocas mais recentes com a ascensão do capitão Jair Jesus (ops, Messias) Bolsonaro à chefia da Nação, eu usava uniforme quando frequentava a escola na localidade de Linha Alta, no então distrito de Cerro Branco, hoje município emancipado de Cachoeira do Sul.

Era de tecido branco.

No bolso que ficava à altura do coração, lia-se no nome do estabelecimento de ensino. (Mãe, me perdoa, mas esqueci o nome da escola!). Por baixo, às vezes, não se usava nada além de um calção ou calças curtas. Nem importava se era tênis, chinelo de dedos ou tamancos. Mas tinha que se usar o uniforme que, por sua vez e por todos, era chamado de tapa-pó.

Protegia, suposta e ineficientemente, da terra que vinha da estrada revestida com cascalho e que à passagem de qualquer veículo virava uma ‘porvadeira’ só! Quando chovia, era um lamaçal e os cuidados tinham que ser redobrados, pois era frequente escorregarmos nas pedras embarradas e cair. Havia quem sofresse entorse no tornozelo. Coisa comum.

Lembro que certa feita, nesta escolinha da Linha Alta – uma brizoleta, aquelas construções de madeira, modelo padrão, que o ex e falecido governador Leonel Brizola espalhou aos milhares pelo Rio Grande do Sul afora, fruto da sua preocupação com a questão educacional – acidentei-me. Escorreguei e caí do alto da escada.

Havia chovido.

A escada tinha uns cinco ou seis degraus.

Era altura suficiente para causar estragos num corpo franzino feito o que eu tinha, virado em osso como diziam os colegas – me chamavam até de “pau de virar tripas”. Até hoje não sei o porquê.

Construída com tijolos, a escadinha tinha um limo, aquele revestimento esverdeado que nada mais é que o acúmulo de musgos escorregadios. Eu usava uma capa plástica (lembrem-se: estava chovendo!) transparente, com capuz e que deveria impedir que a gente ficasse molhado pelo menos até os joelhos. Mas a gente acabava sempre ensopado.

Na pressa de ir para casa chutando pedras com minhas “Sete Vidas”, calçado chique que poderia ser comparado a um Nike dos dias de hoje, saí da sala correndo. Enredei-me na capa plástica, pisei em falso no musgo escorregadio e me estatelei, no chão. Ato contínuo abri o maior berreiro. Que feio! Um guri de sete ou oito anos chorando, onde se viu?!

A professorinha, que normalmente me acompanhava até em casa já que morava próximo e era filha de um colega de trabalho de meu pai e de uma senhora amicíssima de minha mãe, na intenção de me socorrer levantou-me pelo braço como se fosse um guincho da Darcy Pacheco, daqueles que erguem centenas de toneladas em obras de construção civil.

E – ainda pelo braço! – praticamente me arrastou até em casa onde fui entregue chorando e sentindo muitas dores no meu ombro esquerdo. Compressa quente vai, compressa quente vem, a dor custou a ceder. Acho que alguns dias, não recordo ao certo. Só bem mais tarde, anos depois, em um exame, é que descobri que eu tinha a clavícula esquerda fraturada.

Bingo!                                                                                                  

Foi na escolinha de Cerro Branco, naquele tombo na escadinha com musgos esverdeados e escorregadios da brizoleta em que estudava.

Sei lá por qual razão lembrei disso hoje.

Acho que foi por causa dos assuntos que pulularam aqui na redação.

Ou talvez pela truculência – ainda que involuntária – com que fui tratado então, época em que se tinha medo de tudo e de todos, em que se aprendia na base da “decoreba” (era obrigatório saber a tabuada todinha, todos os estados e suas capitais, e por aí afora!), em que o castigo era ficar ajoelhado sobre grãos de milho com o rosto virado para um canto da sala, em que literalmente dávamos a mão à palmatória, e que repetíamos o ano se, a cada mês, não alcançássemos a nota necessária para a aprovação.

Ditadura, governo militar, golpe de 64…

Condição governamental que me acompanhou por muito tempo e que só acabei entendendo o que realmente era quando, já trabalhando como repórter de rádio, assisti ao editor e ao apresentador de um programa de jornalismo da emissora serem levados a uma das unidades do Exército da cidade para “prestarem esclarecimentos” sobre as razões pelas quais tinham colocado no ar um líder do MDB para conceder entrevista, ocasião em que a pessoa desceu o sarrafo nos generais.

Para quem não sabe: MDB era a sigla do partido denominado Movimento Democrático Brasileiro, de oposição à Aliança Renovadora Nacional (Arena) dos “milicos”, como se dizia. No período dos militares, eram apenas dois partidos.

Naqueles dias, e lá se vão, já, uns bons pares de anos, mais de meio século, pasmem, a gente fazia fila para entrar na sala de aula. Duas vezes por semana nos perfilávamos diante do pavilhão verde-amarelo para entoarmos com garbo e galhardia o Hino Nacional. Em setembro, o Hino da Independência. Em novembro, o Hino da Bandeira.

Mesmo que não entendêssemos patavina alguma do que queriam dizer certas palavras e estrofes…

Já na cidade grande – mudei para Cachoeira do Sul no comecinho de 1970 – fui estudar no Escola Municipal Dr. Getúlio Dorneles Vargas. Assim mesmo, nome completo. O rigor sobre uniformes, filas, hinos, ganhou um plus “a mais”: passamos a rezar em determinados dias da semana por conta da educação religiosa como parte do currículo.

Mesmo sendo, o estado, laico!

Logo adiante, já no Colégio Estadual Dr. Borges de Medeiros, tínhamos as disciplinas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil. Aulas de línguas e de artes plásticas. Educação Física também era obrigatória. E todos os dias aqueles 500 ou mais alunos se perfilavam para cantar o Hino Nacional e, só então, conforme o número da turma, ingressavam no prédio e nas suas respectivas salas.

Pois é.

Hoje se lê muita condenação tanto ao rigorismo do passado quanto à liberdade – libertinagem em alguns casos – do presente. Não sou daqueles radicais. Acho que não devemos ser de extremos tipo céu ou terra, 8 ou 80…

Havia coisas boas no meu tempo de estudante? Claro que sim.

E ruins, obviamente que existiam.

O mesmo acontece na contemporaneidade. O modernismo trouxe para o homem de hoje muitas vantagens e desvantagens. A globalização, a rede mundial de computadores e a consequente instantaneidade da comunicação, as drogas e com elas o aumento da violência para viabilizar os meios de obtê-la, a flexibilização do processo ensino-aprendizagem, a desvalorização de certos profissionais (a grande maioria, quase a totalidade), a corrupção (não que eu seja bobinho ao ponto de achar que não havia corrupção nos governos militares e até antes deles), as guerras tecnológicas, os acidentes e desrespeito à natureza…

Enfim!…

Não, não foram os militares que fraturaram a minha clavícula esquerda.

Olha só, esquerda!

Mas o que se avizinha e o que vejo no horizonte pode significar que sim, muitas clavículas serão quebradas no futuro. Seja pela truculência do cassetete, da baioneta, ou da falta de ter o que por à mesa na hora do almoço e do jantar.

Se houver almoço e jantar.

 

Por estas e por outras que eu digo, para o mundo que eu quero descer.

Ah, aproveita e me corta os tubos!

 

 

 

 

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