Quem assistiu a série House of Cards em Netflix lembra do malvado favorito Frank Underwood beneficiado nas eleições por um esquema de fake news e uso do Big Data. Era o vídeo imitando a vida. Em 2016, na campanha presidencial norte-americana, uma união entre o magnata Robert Mercer, dono de um fundo de investimento, e o delinquente intelectual Steve Bannon, executivo da Goldman Sachs, manipulou algoritmos – e eleitores – em uma estratégia mafiosa, de desinformação, robôs e destruição de reputações, que levou à eleição de Donald Trump. No ‘escândalo da Cambridge Analytica', processo que chegou à Suprema Corte para anulação do pleito e ainda ameaça o eleito de impeachment, o Facebook recebeu uma condenação milionária. Em 2018, a estratégia foi aplicada no Brasil, promovendo a razia da política e a criação do ‘mito’ Jair Bolsonaro. Corta para Gravataí: estariam em funcionamento na aldeia ‘gabinetes do ódio?’, criados nos últimos anos, para favorecer políticos e candidatos?
Um vereador apresentou na manhã desta terça uma representação ao Ministério Público Eleitoral pedindo investigação por “(…) Fake News. Criação e administração de páginas e grupos de comunidade. Perfis falsos. Propaganda eleitoral antecipada por via difusa (…)”.
O parlamentar anexa à peça prints de postagens, uma lista de supostos perfis falsos e áudios que mostrariam um mercado de páginas e comunidades de redes sociais, e levanta suspeitas de tentativa de extorsão, além de um apresentar um organograma tipo ‘powerpoint’ que liga políticos com mandato e candidatos a administradores e moderadores – por vezes, as mesmas pessoas.
Dilamar Soares não cita os envolvidos na denúncia, mas as perguntas da ‘entrevista-bomba’ podem trazer respostas sobre personagens que vão aparecer caso os dois promotores eleitorais de Gravataí abram inquérito civil público para investigar a peça assinada pelo parlamentar e pelo advogado Bruno Kologeski, e que teve apoio na confecção do delegado aposentado da Polícia Federal Átilo Cerqueira, morador da Paragem Verdes Campos.
Siga trechos da entrevista dada ao Seguinte:, por vídeo-chamada, pelo vereador do PDT de Gravataí.
Seguinte: – Qual o objetivo da representação ao Ministério Público Eleitoral?
Dilamar – A defesa da livre expressão e da democracia, a igualdade de oportunidade para todos em uma eleição que, devido à pandemia e ao distanciamento social, será ainda mais digitalizada. O Ministério Público é o guardião da lei. Só peço uma eleição justa e transparente.
Seguinte: – Como funciona o ‘mecanismo’ que denuncias?
Dilamar – Ofereci aos promotores a cronologia da criação de grupos, páginas e comunidades de Facebook, com diferentes nomes fantasia, que por vezes mudam conforme os interesses, e são administrados por agentes públicos, pré-candidatos e perfis falsos com o objetivo de destruir reputações e criar salvadores da pátria, com base em fake news e manipulações. As pessoas são convidadas, ou participam desses grupos acreditando que são serviços para a comunidade, ou páginas de notícias, e depois são enganadas por organizações com interesses políticos e econômicos. Como o algoritmo busca o engajamento, são postadas notícias sensacionalistas, pinga sangue, e no meio disso políticos e aspirantes a políticos usam o alcance, que passa de 2 milhões, para atacar adversários sem dar direito de resposta e fazer campanhas de promoção pessoal e política. Não vou citar nomes ainda, mas estão lá na denúncia ao MP.
Seguinte: – Ao não citar nomes usas da estratégia de Sérgio Moro contra Bolsonaro, para não incorrer em denunciação caluniosa?
Dilamar – Apresentei fatos. O Ministério Público é quem decide se há elementos para abrir o inquérito. Cuido muito quando faço uma denúncia. Um exemplo conhecido é o prefeito Marco Alba (MDB), que por 10 anos foi atacado, inclusive nestas páginas, quando era investigado na Operação Solidária. Ele foi inocentado por unanimidade. Eu também. Fui condenado em Gravataí (no ‘caso das candidaturas laranjas’) e depois absolvido pelo TRE e TSE. Sou diferente dessa gente das páginas, que não garante direito de resposta, ou espaço para a prestação de contas. Só permitem publicar o que é do interesse de seus grupos políticos.
Seguinte: – Há políticos com mandato envolvidos?
Dilamar – Sim. Somente um agente público tem mais de 40 páginas, inclusive em outros municípios. A estratégia é sempre a mesma: cria-se um grupo com nome fantasia, tipo “últimas notícias da cidade”, e aí começam a se passar por site de notícias, mesmo sem ter CNPJ ou jornalistas profissionais, e depois manipulam a informação em benefício do grupo político. Muitas páginas têm entre seus administradores perfis fake, o que é de fácil comprovação. As ideias, e até a forma de escrever, os erros de português, são os mesmos de perfis verdadeiros. Enfim, se travestem de órgão de notícia para atrair o público, fazem sensacionalismo e ainda colocam telefones à disposição, para a pessoas acharem que estão falando com um repórter, quando é um integrante da organização captando WhatsApps para disseminar fake news ou notícias direcionadas. E há um comércio dessas páginas.
Seguinte: – Um mercado de venda de páginas?
Dilamar – Sim. Pedi para ser ouvido pelo Ministério Público porque, além da cronologia da formação dessas organizações, tenho áudios e depoimentos de testemunhas que foram procuradas para venda das páginas. O intuito certamente não é só informar. Há agentes públicos envolvido, diretamente ou como contratante de administradores.
Seguinte: – Então suspeitas de que, como reportagens mostraram acontecer com o ‘gabinete do ódio’, do clã Bolsonaro, há uso de espaços públicos e CCs na administração dessas páginas?
Dilamar – Se acontece, é muito grave. Estou protocolando ofício para que nada seja apagado de computadores de agentes públicos até o MP apurar a denúncia. Se comprovada a alimentação dessas pseudo páginas de notícias durante o expediente é dinheiro público sendo usado de forma ilegal. Também é preciso saber qual a origem do dinheiro oferecido para comprar essas páginas. Há ainda caso de postagens patrocinadas com ataques a adversários políticos. De quem é o cartão de crédito que pagou o Facebook? De que IP partiu? Não há como apagar os rastros.
Seguinte: – Então suspeitas de tentativas de extorsão?
Dilamar – Sim, suspeito. Se a cronologia de prints e áudios mostra uma briga dentro de um grupo político, que leva administradores a procurar adversários, um agente público confessa ser administrador de páginas, diz “falar em código”, e ao não haver acerto o grupo volta a se reunir em torno de uma candidatura, algo há. Não pode a comunidade de boa fé ser usada por essas páginas para, ao vender influência, extorquir aquele que for o prefeito de plantão. Uma notícia, um vídeo publicado no dia da eleição em páginas com alcance de 2 milhões de pessoas podem destruir uma reputação e decidir uma eleição. Fake news não provocam só linchamentos políticos, mas literalmente colocam em risco a vida de pessoas. Mataram uma mãe, no Guarujá, porque foi confundida na rede social como uma sequestradora de crianças.
Seguinte: – Insisto: há um ‘gabinete do ódio’ em Gravataí?
Dilamar – O MP vai investigar. O que não tenho dúvidas é de que há um grupo político com uma estratégia de tomar conta da eleição usando essas páginas conforme seus interesses políticos e econômicos. Há caso de suspeito de corrupção que usa perfil fake para administrar página, muda o nome e esquece de trocar a foto. Qualquer perícia comprova. Eles sabem que os mapeei todos.
Seguinte: – Bombeiro Batista é o único vereador que aparece como administrador de páginas. É filiado ao PSD, assim como Odair Goulart, digital influencer que é dono do Acorda Gravataí, página com mais de 100 mil pessoas, e que também é pré-candidato à Câmara. O candidato a prefeito do partido é Dimas Costa. A denúncia é sobre este grupo político?
Dilamar – (silêncio). Os nomes estão na representação. Fiz meu papel como vereador. Não poderia prevaricar. Inclusive pedi para ser ouvido pelos promotores.
Seguinte: – Por que acionar o MP Eleitoral e não investigar em uma CPI na Câmara?
Dilamar – Preferi acionar o órgão que tem responsabilidade de zelar pelo bom andamento da eleição. Entreguei um mapa com todos os nomes fantasia e fakes, que levam a uma interligação dessa rede sempre com um mesmo agente público como administrador e o benefício a um grupo político.
Seguinte: – Não estás tentando censurar grupos onde a comunidade pode cobrar dos políticos?
Dilamar – Pelo contrário, quero é que abram espaço para todos. Podem me atacar, desde que eu possa responder. Um exemplo: minhas postagens eram permitidas em um grupo do bairro Neópolis. Quando um político começou a administrar a página, não aceitaram mais meus posts.
Seguinte: – É o bairro do vereador Bombeiro.
Dilamar – (silêncio) Interpretações são por conta do jornalista. Pedi para ser ouvido no MP.
Seguinte: – Já tentaste interagir com essas páginas?
Dilamar – Minhas postagens não são aceitas, ou sou banido, mesmo quando é para responder a marcações que eleitores fazem, com pedidos de informação ou mesmo críticas direcionadas a mim. Nesta semana foi pior: tentei postar vídeo em grupo onde defendia a validação do diploma e contratação de médicos brasileiros formados no exterior e me denunciaram por publicar conteúdo impróprio. Não permitem informações precisas. Criam uma falsa realidade onde alguns são culpados por tudo, e outro resolvem tudo. Coincidentemente, os mesmos parceiros políticos. As páginas de maior alcance pertencem todas a filiados a um mesmo partido. Já tive grandes enfrentamentos com o Seguinte:, contigo, mas nunca me foi negado direito de resposta. O que fazer quando se trata de um fake? Não acha que a comunidade é enganada ao participar de um grupo de proteção animal, de pets, que depois muda o nome para Endireita Rio Grande do Sul, ou Todos Com Bolsonaro? Deixo o desafio para debater ao vivo com qualquer um nessas páginas. Sei que não aceitarão. A estratégia é criar dificuldades para vender falsos mitos.