Deborah Neves questiona prisão de ativistas, decisões de como tratar patrimônio histórico e doação de empresário para restaurar monumento que foi incendiado na capital paulista. O Seguinte: reproduz a entrevista publicada pela Agência Pública
Uma ação em uma estátua na capital paulista levou à detenção de três pessoas nesta quarta-feira (28). O entregador Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Galo, sua esposa Géssica Barbosa e o ativista Danilo Oliveira, o Biu, tiveram prisão preventiva decretada após comparecerem à delegacia para colaborar com as investigações que apuram a queima do busto de Manuel de Borba Gato no dia 25 de julho, no bairro Santo Amaro. Eles foram indiciados por associação criminosa, incêndio e adulteração de placa de veículo.
Esta não é a primeira vez que o monumento em homenagem à figura do bandeirante é alvo de intervenções de ativistas, que denunciam a participação de Borba Gato no processo de genocídio de povos indígenas e de crimes como estupros. Para a historiadora Deborah Neves, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas, as sucessivas ações revelam um sentimento de descontentamento e de incômodo que os governos têm sido falhos em lidar.
“Nenhuma dessas intervenções foram suficientes para trazer o debate para esse patamar que estamos trazendo agora”, afirma a historiadora. “Vamos continuar permitindo essa interrupção do debate enquanto a gente trata isso como um dano ao patrimônio e não como em um momento de se pensar a quem a nossa sociedade continua prestando homenagens”, analisa.
Desta vez, o grupo Revolução Periférica, do qual Galo é membro, assumiu a autoria do ato político. Antes de sua prisão no 11º Distrito Policial de Santo Amaro, ele afirmou que o objetivo da ação era abrir a discussão. “Para aqueles que dizem que a gente precisa ir por meios democráticos, o objetivo do ato foi abrir o debate. Agora, as pessoas decidem se elas querem uma estátua de 13 metros de altura de um genocida e abusador de mulheres”, disse o ativista.
Autora do livro “A persistência do passado: patrimônio e memoriais da ditadura em São Paulo e Buenos Aires” (Alameda, 2018), Neves afirma em entrevista à Agência Pública que a Prefeitura não tem criado, no âmbito do Executivo, caminhos institucionais para dialogar sobre estes monumentos. Ela cita que um projeto de Lei para a criação de um comitê permanente para debater o patrimônio recebeu pareceres negativos no conselho que delibera sobre o patrimônio cultural do Estado de São Paulo.
Dois dias após a ação que incendiou a estátua de Borba Gato, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), anunciou que um empresário, ainda não identificado, vai arcar com o restauro da estátua. O que a historiadora questiona: “Por que a voz de um empresário que está se dispondo a financiar a recuperação desta estátua tem mais valor do que esse coletivo que decidiu dizer que essa memória tem que ser questionada?”, diz a especialista.
O monumento foi inaugurado em 1963 na Praça Augusto Tortorelo de Araújo. A obra de 20 toneladas assinada por Júlio Guerra faz parte de uma série de homenagens à memória dos bandeirantes em espaços públicos, como a Avenida dos Bandeirantes, a Rodovia dos Bandeirantes, o Monumento às Bandeiras e até mesmo a sede do governo paulista, instalada no Palácio dos Bandeirantes desde 1964.
Segundo a historiadora, essas homenagens integram um imaginário construído para fortalecer a ideia de que São Paulo é a locomotiva do Brasil.“Esse apego à memória dos bandeirantes também tem a ver com um componente xenófobo, de construção de uma identidade de que São Paulo é maior que o resto, do que o próprio país”, analisa Neves.
Para ela, ações que buscam reparação têm crescido em países como Brasil e Chile por causa da democratização do acesso ao ensino e do reconhecimento de que violações de direitos hoje têm origens históricas. “A história é cada vez mais necessária e urgente porque ela não se trata do passado, ela se trata do presente”, diz a historiadora.
Confira a entrevista.
Desde pelo menos 2013, a estátua de Borba Gato e o Monumento aos Bandeirantes, no Ibirapuera, foram alvos de diversas ações. Nestes momentos, sempre se abre um debate sobre vandalismo à memória dos bandeirantes. Na sua visão como historiadora, por que esses ataques suscitam tantos ânimos? Qual o interesse hoje na disputa pela referência cultural a este período, especificamente?
De um modo geral, aprendemos uma visão na escola como a correta e a única visão sobre a história. E desconstruir mitos é um processo que leva muito tempo. Gerações foram educadas nas escolas com essa perspectiva do bandeirante como herói, como os responsáveis pelo alargamento do território nacional. Eu acho que o grande ponto que está no debate agora é que não existe a tentativa de se negar a história, mas de se observar a história a partir do que ela efetivamente é.
Nós temos por hábito, e a preservação do patrimônio também está dentro dessa mesma mentalidade, uma ideia de uma história sem conflitos, em que o estabelecimento do país se deu por meios absolutamente pacíficos e muito romantizados. Hoje, com o aprofundamento do autoritarismo, e do discurso sobre o que é ou não o povo brasileiro — tivemos, por exemplo, o ex-ministro da educação Abraham Weintraub falando numa reunião ministerial de que ele odeia o termo povos indígenas porque todo mundo é brasileiro —, percebemos que esse é um discurso que foi forjado lá no século 19, como se o povo brasileiro fosse o amálgama muito pacífico entre as três raças: o negro, o branco e o indígenas.
Ou seja, o acirramento que nós estamos vivendo no presente está contestando justamente esse passado que foi construído. Temos uma crescente denúncia de violências policiais, que estão muito pautadas pelo racismo estrutural da nossa sociedade. E eu acho que a dificuldade que a sociedade tem de discutir é quando a percebemos que o racismo estrutural não está só nas ações da polícia ou na ausência da população preta e indígena na televisão ou no imaginário popular, mas quando precisamos precisa lidar com isso no nosso cotidiano.
E, ao fazer esse ato na estátua do Borba Gato, está-se discutindo não sobre o possível crime contra o patrimônio cultural, que se efetiva ao atear fogo, mas colocamos em xeque toda essa construção histórica do que é a identidade do Brasil. Estamos questionando em que bases a nossa sociedade moderna, se gente fosse desde o mercantilismo e as navegações, em que bases o próprio capitalismo foi fundado, que foi na escravização de pessoas, do tráfico de pessoas entre continentes para exploração de mão de obra. Isso tudo leva a um questionamento não só do nosso país, mas da própria do mundo ocidental. Então, é muito difícil mesmo porque a mentalidade é algo que demora muito tempo pra mudar e culturalmente também a cultura também é algo que demora muito tempo pra mudar.
Tenho a impressão que, em São Paulo, quase como um apego a essa memória dos bandeirantes. Por quê?
É difícil particularizar, mas há um imaginário que foi construído sobre São Paulo de que estado é a locomotiva do Brasil e que São Paulo é o responsável pelo Brasil ser o que é. Isso está obviamente ligado à própria história do estado e do bandeirantismo. Vemos, por exemplo, que não é só a estátua do Borba Gato, mas o Palácio do Governo, desde 1964, está instalado no Palácio dos Bandeirantes. Temos também a Avenida dos Bandeirantes, a Rodovia dos Bandeirantes… Ou seja, tudo que é muito grandioso dentro do estado de São Paulo sempre está relacionado a essa memória bandeirante.
Isso tem a ver com essa construção da ideia de que São Paulo é maior do que o próprio Brasil. É algo que foi, inclusive, contestado durante o estado novo. E aí entra uma outra memória sobre São Paulo, que é a tentativa frustrada da revolta de 1932, de derrubar o regime instaurado em 1930. Isso porque Getúlio Vargas tentou acabar com essa ideia das identidades regionais.
O próprio Monumento às Bandeiras está construindo lá no Parque do Ibirapuera por ocasião das festividades do Quarto Centenário [da cidade de São Paulo, evento de celebração dos 400 anos do município em 1954], mas, na verdade,sua construção já estava prevista desde os anos 1920, num concurso público feito pela Prefeitura no qual o vencedor foi o [Victor] Brecheret. E ela só foi ser construída no Quarto Centenário justamente porque Getúlio Vargas impediu essa construção durante a década de 1930, para evitar regionalismos. Então, esse apego à memória dos bandeirantes também tem a ver com um componente xenófobo, de construção de uma identidade de que São Paulo é maior que o resto, do que o próprio país.
No dia 28 de junho, Paulo Lima, o Galo, sua esposa Géssica Barbosa, e Biu tiveram a prisão preventiva após o incêndio à estátua do Borba Gato, no dia 24. O coletivo Revolução Periférica assumiu a autoria do ato. No Twitter, Galo disse que a ação teria como objetivo “abrir um debate”. Como você enxerga a prisão dos ativistas?
Já ocorreram prisões em outras situações semelhantes. O pichador M.I.A, que tinha feito intervenções no Monumento às Bandeiras e no próprio Borba Gato, foi detido em 2018 justamente por atos semelhantes. Então, a prisão do Galo, da Géssica e do Biu não me surpreendeu. Infelizmente, estamos tratando um tema que é muito maior do que está previsto no Código Penal, em termos de tipificação de crimes contra o patrimônio, quando poderíamos ter, como eles mesmo disseram, a oportunidade de um debate sobre uma questão estrutural da sociedade, que foi o que provocou essa ação deste coletivo Revolução Periférica.
Além do Brasil, este momento de questionamento a monumentos em homenagem a colonizadores têm se multiplicado em outros países, como no Chile, onde houve mais de 300 atos contra monumentos e estátuas durante as manifestações de 2020. Quais processos nestes países explicam este momento de questionamento a estas memórias coletivas?
Eu acho que voltamos de novo à importância da história. Interessante que, por exemplo, a Reforma do Ensino Médio teve o ensino de história desobrigado, mas estamos vendo que a história é cada vez mais necessária e urgente porque ela não se trata do passado, ela se trata do presente. E as próprias pesquisas que têm sido feitas ao longo dos anos por historiadores no mundo todo, mas principalmente nos países colonizados, têm dado conta dos resultados dessa colonização.
Não podemos esquecer que as elites de cada país colonizado, como o caso como você citou o Chile e outros países da América Latina, são formadas por descendentes dos colonizadores, espanhóis e portugueses. Portanto, a memória forjada sobre esses espaços é fruto também dessas elites que são essencialmente européias. Por mais que os processos de independência tenham ocorrido — no nosso caso, também muito tutelado por Portugal —, esses processos também foram fruto dessas pessoas que são descendentes europeus, mesmo nascidas aqui na América. Então, temos uma elite política que é europeia.
Portanto, a constituição da nacionalidade e da identidade passaram pela glorificação desse passado colonial e não dos povos originais, que muitas vezes foram dizimados, não tiveram força suficiente na sociedade para reivindicar a sua própria memória como parte da memória nacional porque foram subjugados e houve um genocídio.
No programa Roda Viva, o jornalista e historiador Laurentino Gomes se posicionou contrário à derrubada da estátua de Borba Gato “feita de forma impulsiva”. Ele defendeu haver caminhos institucionais para a retirada desses monumentos. Então, além de propostas legislativas, quais são os mecanismos à disposição para o questionamento e revisão destes monumentos?
Acho bom você ter citado o Roda Viva e essa fala do Laurentino Gomes porque, na segunda-feira [26 de julho], o Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, também esteve no Roda Viva e foi questionado sobre isso, mas ele jogou a bola pro Legislativo. Ele falou algo como temos que discutir, mas tem propostas no Legislativo, quase eximindo o Executivo da responsabilidade, sendo que já tivemos uma experiência muito recente aqui em São Paulo, por exemplo, durante a gestão do Fernando Haddad [de 2013 a 2016], que foi o programa Rua de Memória, que debateu justamente nomes de ruas da cidade de São Paulo que faziam referência a pessoas envolvidas com os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura civil-militar aqui no Brasil, entre 1964 e 1985. Então, isso não é apenas uma atribuição do Legislativo, como quis fazer crer o prefeito ou como muita gente quer tratar o tema. Isso é uma atribuição também do Poder Executivo, que tem como criar políticas próprias para fazer isso acontecer.
Não precisamos esperar até porque os debates do Legislativo também são muito longos, depende de negociações que muitas vezes não acontecem. Então, imagina, por exemplo, se a gente tivesse que colocar sob escrutínio a votação da lei que criou a Comissão Nacional da Verdade — provavelmente, isso não passaria no Legislativo. Podemos começar projetos no próprio Executivo, por meio da Secretaria de Educação; podemos começar um debate pelos próprios museus; e, principalmente, debates dentro das associações de bairros, de territórios, por iniciativa das próprias pessoas que tão afim de debater.
Então, caminhos para isso existem, basta que haja vontade política. E o que estamos vendo é que a vontade política tem sido muito mais da punição de quem tenta provocar o debate porque, dentro dos meios institucionais, esse debate está sendo interditado recorrentemente, do que políticas que efetivamente propõem o debate sobre esse tema.
É interessante você falar sobre o foco na punição de quem questiona porque, na segunda-feira, o prefeito também anunciou que um empresário, ainda não identificado, vai arcar com o restauro da estátua. Então houve essa sequência de fatos: a prisão de quem questiona o monumento e a doação de um empresário favorável à sua manutenção. O que isso diz sobre como lidamos publicamente com a memória?
Eu acho que diz muito, primeiro porque o empresário decidiu não se identificar. E a pergunta que fica é por que ele não quis identificar. Foi bastante sintomático que justamente neste momento, e justamente sobre esta estátua, tenha havido essa disposição praticamente imediata de adotar uma estátua para recuperação.
Também achei interessante a fala do prefeito na segunda-feira porque ele foi questionado sobre se haveria gastos de recurso público para fazer a manutenção da estátua e, em vez de abrir um debate, ele mencionou que o dinheiro viria da iniciativa privada. Então, vamos deixar que a iniciativa privada paute o nosso debate sobre qual a memória que temos que manter no espaço público? Por que a voz de um empresário que está se dispondo a financiar a recuperação desta estátua tem mais valor do que esse coletivo que decidiu dizer que essa memória tem que ser questionada?
E isso não é uma defesa, aqui, do ato em si de incendiar a estátua, mas serve para gente pensar que essas pessoas recorreram a esse expediente porque os meios institucionais estão falhando. Vamos continuar permitindo essa interrupção do debate enquanto tratarmos isso como um dano ao patrimônio e não em um momento de se pensar em que bases e a quem a nossa sociedade continua prestando homenagens.
E, de novo, isso não significa que temos o desejo de apagar a história como muita gente quer crer nem tratar com anacronismo, ou seja, olhar com os olhos de hoje os atos do passado. A questão é: um monumento em praça pública evoca uma memória a determinada pessoa ou a determinado evento. O ponto é: hoje, nós, enquanto sociedade, queremos continuar rendendo homenagens a esse tipo de memória? Eu acho que essa é a grande pergunta que fica desse embate entre “tacar fogo” na estátua e recuperar a estátua. Eu acho que esse é o grande debate.
E o que fazer com estes bens, após uma retirada? Quais são exemplos positivos, na sua opinião, de locais que lidam bem com memórias difíceis e de opressão?
No caso de estátuas, eu gosto muito de fazer a diferenciação entre o que é uma estátua e um lugar de memória. Muita gente trouxe o debate dizendo “ah, mas imagina se a gente quisesse derrubar os galpões de Auswichtz, onde ocorreu o genocídio de parte da população judia na Polônia pela máquina nazista?”. Mas não dá para comparar uma estátua com um lugar que foi construído com uma finalidade, mas que hoje tem um tratamento de museologia, museografia e de exposição que trazem tudo isso com profundidade.
Estátuas colocadas em um lugar público, que é um lugar de passagem, ainda mais que nossas cidades foram construídas para carros e não para pedestres, não permitem que a gente pare, observe e reflita sobre o que elas querem nos dizer. A estátua do Borba Gato fica no centro da Avenida Santo Amaro, que é super movimentada. Quem é que anda no canteiro central ali para ler a placa sobre quem foi Borba Gato e do que ele participou? Então, temos que trazer primeiro essa diferenciação.
Em segundo lugar, você fala sobre a remoção, que é uma das soluções possíveis. Eu achei interessante que um dos ativistas disse na entrevista que as intervenções no Borba Gato já tinham acontecido, primeiro, colocando caveiras no seu pé e depois jogando tinta.
E nenhuma dessas intervenções foram suficientes para trazer o debate para esse patamar que estamos trazendo agora. Essas duas soluções anteriores também são soluções possíveis. Deram a opção, por exemplo, de construir outra estátua em memória da população indígena para trazer essa contraposição de narrativas.
Tratando de estátuas, tenho dois exemplos que eu gosto muito. Um é uma estátua do Alfredo Stroessner, que foi ditador no Paraguai no mesmo período que se alastrou, não coincidentemente, ditaduras pela América do Sul. Essa estátua foi praticamente demolida, cortada e foi prensada entre duas placas de concreto. Há a base onde ela era apoiada e há um outro bloco por cima, então ele está esmagado por esse concreto. Acho essa estátua genial porque ela mostra exatamente isso, como trabalhar com esse tipo de memória no espaço público para esse personagem.
E outro exemplo mais recente é na cidade de Bristol, numa decisão da Prefeitura da cidade. Houve o resgate da estátua de Edward Colston que tinha sido jogada no rio, ela passou por um procedimento de limpeza, mas não foi uma limpeza no sentido de apagar pichações nem nada, mas só limpeza para conservar o material. Hoje ela está exposta no Museu da Cidade, em posição deitada.
Ou seja, já se questiona ali também essa coisa da dessa altivez de estar em um pedestal acima de todos. Agora ela está em posição deitada no museu, pichada e contextualizada, ou seja, com informações sobre quem foi esse cara, o Edward Colston, o que ele fez, o que aconteceu para ele sair da praça pública e ser colocado ali. Agora, está sendo feita uma consulta pública à população sobre o que fazer com essa estátua ao final da exposição.
O PL 404/2020, da deputada estadual Erica Malunguinho, propôs criar uma comissão que avaliaria homenagens a escravocratas na administração pública estadual, como a nomeação de rodovias e prédios públicos. Em junho do ano passado, você deu um parecer técnico favorável ao projeto, mas a comissão do Condephaat deu outro parecer contrário. Como você avalia esta decisão do conselho e o PL?
Eu acho que o PL foi muito simbólico por vir da Malunguinho, que é uma mulher transexual preta que está ocupando um cargo eletivo num ambiente essencialmente machista, como vimos casos de assédio sexual dentro da própria Assembleia Legislativa. Então, já tem toda uma potência e força de esta mulher ter apresentado esse projeto de lei que, de fato, propunha a criação de uma política pública.
Veja, ela não estava propondo apenas a retirada de estátuas ou a mudança de nome de prédios públicos e de logradouros da responsabilidade do estado. Ela estava propondo a criação de um comitê permanente, formado por membros do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil, para debater cada um desses lugares com soluções possíveis. Inclusive, ela cita como uma das possibilidades a retirada dessas estátuas e a disposição delas em museus.
É de praxe que todo tema relacionado a patrimônio cultural debatido na Assembleia Legislativa seja submetido a uma avaliação das unidades técnicas da Secretaria da Cultura e, porque esse projeto tratava de dois temas, do Patrimônio Cultural e também do patrimônio museológico, ele foi submetido a essas duas unidades técnicas da secretaria, tanto a Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM) quanto a do Patrimônio Histórico, a UPPH, que é onde eu trabalho.
No meu parecer, eu apresentei algumas ideias como criação de outros subcomitês, por exemplo, por regiões administrativas do estado que pudessem criar audiências públicas, aulas públicas, utilizando os recursos das próprias universidades paulistas, que nós temos três aqui — a USP, a UNESP e a UNICAMP, que têm corpo de professores e de alunos muito capazes de fazer esses debates pelo estado — para levantar quais são esses lugares, quais são essas estátuas e a partir desses debates públicos definir qual é a melhor solução. Foi nesse sentido que eu apresentei o meu parecer e, de modo geral, eles são devolvidos imediatamente para a Assembleia Legislativa após nossa manifestação.
Mas todo esse processo administrativo, não foi só o meu parecer em si, foi submetido ao Condephaat, que é o conselho que delibera sobre o patrimônio cultural aqui em São Paulo. Houve o parecer de dois conselheiros, um representante do Iphan e o outro representante da Procuradoria Geral do Estado, que fizeram o voto contrário à aprovação desse projeto de lei, com base, em primeiro lugar, na argumentação jurídica de que ele era inconstitucional — mas não por conta do seu mérito, mas porque a Malunguinho apresentou no projeto de lei a proposta de que, uma vez aprovado o projeto de lei, em caso de descumprimento, as pessoas que descumprissem esse artigo seriam enquadradas no crime de improbidade administrativa, que é quando você deixa de fazer alguma coisa propositalmente para impedir uma política pública ou o que estabelecido na lei aconteça, quando está sob a sua responsabilidade fazer isso acontecer.
Eles se apegaram a esse argumento dizendo que a improbidade administrativa tem uma lei própria e que querer colocar essa tipificação de crime administrativo neste projeto de lei era inconstitucional. Mas isso é uma coisa menor, poderia ter sido corrigido, por exemplo, dentro das próprias comissões da Assembleia Legislativa, o que acabou não acontecendo. Por causa desse argumento, inclusive, houve o arquivamento dessa proposta. Mas sabemos que, na verdade, esse é um discurso legalista que interrompe mais uma vez o debate. O que é mais grave nesse voto desses dois conselheiros do Condephaat era que ele também era pautado em uma argumentação que traz uma falsa simetria de coisas que não são equiparáveis.
Eles disseram que, além de ser inconstitucional, iria contra à missão do órgão — que seria de defesa do Patrimônio Cultural. No texto, eles dizem que o papel de preservação não tem o significado de celebrar ou apoiar práticas de racismo ou de descriminação, mas é sempre de defesa das “memórias doces ou amargas” de um passado que pode ser reinterpretado, mas é imutável. Segundo o argumento, uma comissão com o objetivo nobre de pagar um passado vergonhoso, pressupõe o afastamento da memória. Como você avalia esta afirmação?
Eu acho que as pessoas confundem a história com a memória — a história é o que aconteceu; a memória é aquilo que a gente faz coletivamente com o que aconteceu, o que vamos lembrar e o que vamos destacar a partir do que aconteceu. Eu acho muito interessante porque é um dos argumentos que eles usaram foi uma falsa equivalência de argumentos trazendo o ato do Rui Barbosa de queimar os arquivos da escravidão como uma forma de apagar o passado. Essa comparação é absolutamente fora de lugar porque estamos falando aqui de queima de documentos oficiais para tentar ocultar os crimes do próprio estado a fim de evitar que as pessoas que foram vítimas desses crimes recorram à justiça para ter indenização, por exemplo.
O que a Malunguinho está propondo é exatamente o oposto, é a criação de uma comissão que vai revisitar a memória e não a história. Não estamos discutindo a reescrita da história, mas a quem rendemos homenagens no presente.
Esse parecer do Condephaat é uma visão ultrapassada do que é o papel dos próprios conselhos e o que é o patrimônio cultural. Temos essa visão que é muito cara aos 1970, de quem determinava o que era patrimônio ou não era o Estado, a partir de técnicos que diziam que aquilo valeria ser reconhecido como patrimônio ou não. Hoje existe uma perspectiva muito mais ampla, de que quem estabelece o que é patrimônio é a população e o estado vem com um reconhecimento que visa garantir a perpetuação dessas manifestações.
O que eu pergunto é: o racismo é patrimônio do país? Patrimônio no sentido de que devemos louvar isso ou devemos combater isso? Faz sentido dentro do arcabouço legal, já que o racismo é crime inafiançável no Brasil? Manter essa memória pública como algo a ser rememorado está indo contra as leis do próprio país. Qual sentido de manter isso por apego a uma memória que já não serve mais?
Não existe uma proposta de apagamento ou revisionismo do passado, mas de uma revisão a uma memória desse passado, o que é bastante diferente. O Condephaat tem que fazer uma defesa do Patrimônio? É óbvio que sim. Mas temos que estar sintonizados com as demandas da sociedade, e uma parcela significativa da sociedade está dizendo há muito tempo que tombar uma fazenda sem dizer que ali tinha uma senzala para aprisionar pessoas pretas não é mais admissível. Hoje não dá mais pra fazer tombamento como se fazia nos anos 1970. Não cabe mais isso.
De um lado, existe uma revisão progressista que quer contar a história dos oprimidos e dos vencidos. Mas também cresceu um tipo de revisionismo, por exemplo, de pessoas querendo elogiar a ditadura e a escravidão. Como diferenciar essas coisas? Se é importante revisitar a história, como não abrir espaço para essa linha, digamos, “terraplanista” da história?
De novo, com a Constituição Federal e tratados internacionais. Se o que eu defendo exclui, é criminoso, causa violação de direitos, não pode ser uma política de estado sua rememoração. Você tem todo o direito de manter um busto do [coronel Carlos Alberto Brilhante] Ustra dentro da sua casa, no espaço privado, mas o Estado, o agente mediador da sociedade, não pode ser apenas um refrigério da memória de segmentos vencedores. Então, quando falam que não pode uma minoria autoritária ir lá colocar fogo para dizer que temos que esquecer isso, eu me pergunto, também não é uma minoria que toma essas decisões no estado? E é uma minoria que tem cara, que tem um fenótipo específico — e de modo geral, são homens brancos.
A história é o que aconteceu e o que está sempre em disputa é a memória sobre a história. O que vivemos agora é um momento em que temos que ter compromisso com a história e não com memórias que já não cabem mais. Não podemos tornar a história refém da memória, não podemos tratar o passado como um almoxarifado. O passado e a história servem para a gente entender nosso presente. Ela está a serviço do presente e não do passado.
Esse movimento louvar a extrema-direita não é um movimento novo. Existe negacionistas do holocausto, do genocídio armênio e dos povos originários da América Latina, existem negacionistas do tráfico de escravos, tentando justificar que os próprios pretos africanos escravizavam pessoas. Isso não é novo, não é um movimento recente e isso sempre existiu.
A memória é um campo de disputa, jamais um campo de consenso. Cabe o que ainda resta do Estado democrático de direito se posicionar como mediador e ouvir. E temos uma parte significativa da população não se identificando com essa memória. E não é só porque eles não gostam, mas porque essa memória está falando sobre as bases que fundaram este país pela violência. Estamos rendendo homenagens à memória de pessoas que mataram, que estupraram, que vandalizaram aldeias indígenas inteiras. Eu acho que isso diz muito sobre nosso presente. Até que ponto isso acabou? Não acabou, continua.