A sanção do Projeto de Lei que cria o Memorial às Vítimas da Covid-19 em Gravataí pelo prefeito Luiz Zaffalon não é apenas um ato administrativo. É um acerto de contas com a história — uma resposta tangível ao grito silencioso de 1.124 vidas gravataienses perdidas na pandemia.
Este colunista propôs pela primeira vez a idéia em 2023, em Gravataí poderia ter um Memorial para 1.116 vidas perdidas pela covid; O ‘PIXida’ genocida.
A iniciativa, agora nascida nas salas do Colégio Dom Feliciano, é um triunfo da pedagogia sobre o esquecimento. Como bem lembrou o professor Leonardo Pianta, “uma cidade é feita de memórias”. E esta memória, gravada em 43.150 casos de gravataienses que enfrentaram a doença, não pode ser reduzida a estatística.
O container que armazenava corpos ao lado do Hospital Dom João Becker — imagem macabra que persiste na retina de quem testemunhou o caos — agora poder ceder em nosso imaginário lugar a um espaço de reverência. A simbologia é potente: transforma-se a desumanização em humanidade.
Aqui, urge resgatar o que a CPI da Covid escancarou: o negacionismo custou vidas. Em 2023, apliquei ao contexto local a conclusão da comissão parlamentar: pelo menos 500 gravataienses poderiam estar vivos se o governo Jair Bolsonaro — e o projeto de morte que custou 704 mil vidas no Brasil — tivesse agido com ciência e solidariedade, não com cloroquina e discursos contra máscaras.
O memorial, portanto, não é apenas um monumento. É um atestado: lembrará às futuras gerações que políticas públicas baseadas em evidências salvam, enquanto o negacionismo assassina. Assim como a conivência com quem, ao imitar asfixiados em palanques, banalizou a morte.
Como afirmei em 2023: “o tempo é cúmplice silencioso das tragédias”. A enchente de 2024 e a repetição dos mesmos problemas em 25 mostram como desastres, mesmo recentes, são soterrados pelo ritmo voraz da informação. O memorial rompe essa lógica. E os estudantes, ao entregar o projeto primeiro para a Câmara e depois para a Prefeitura, fizeram mais que um exercício cívico: devolveram à política seu sentido primordial — o serviço à coletividade.
Enquanto famílias enlutadas terão finalmente um lugar para flores, os dados de 2025 comprovam o aviso feito aqui: a desconfiança nas vacinas, legado do governo genocida, persiste como ameaça. Campanhas antivacina reduziram a cobertura infantil do país a índices perigosos — apenas 33% neste ano, ante 80% há uma década. Quase 100% das mortes infantis por doenças respiratórias este ano ocorreram entre não vacinados.

Aos críticos e fanáticos que venham a identificar ‘doutrinação’ no projeto dos alunos, respondo com as palavras das Irmãs do Dom Feliciano em seu manifesto de 2018, que provocou dissabores às vésperas da eleição que colocou o negacionismo no poder federal: a escola está “a favor da vida, da verdade e da democracia”. O memorial é a materialização desses valores.
Ao fim, que o imaginário do container de corpos, marco invisível de nosso luto coletivo, seja substituído por um espaço que provoque perguntas incômodas.
Gravataí, ao converter sua dor em pedra e/ ou pixels, dá um passo fundamental. Mas, como escrevi em 2023 e repito agora: nenhuma homenagem apagará o cheiro da morte que pairou sobre o Dom João Becker. Resta-nos transformar essa memória em ação. Para que o memorial não seja apenas um epitáfio, mas um farol.
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