Acho que nunca tive tanta expectativa com um filme. Mas é a vida de Ney Matogrosso, poxa. Esse homem é um ícone de liberdade e uma das maiores referências que tenho como artista, principalmente como um artista múltiplo, plural, que se envolve com vários aspectos e segmentos da arte. Então, assim que saíram as primeiras notícias, já passei a ficar atenta a tudo que saía sobre essa produção. Foi um fascínio ascendente, a cada nova imagem, a cada video de bastidores…
No meio desse caminho, eu li o Vira-lata de Raça, autobiografia maravilhosa que traz as memórias de Ney sobre essa trajetória ímpar, com a organização de Ramon Nunes Mello. Justamente esse livro foi o ponto de partida do diretor e roteirista Esmir Filho para construir a cinebiografia Homem com H. Mas além de contar a história, que já é muito rica, Esmir conseguiu traduzir em imagens a essência de Ney de Souza Pereira: um menino cujo olhar desde cedo brilhava com a arte, um jovem que foi viver no mundo para não se limitar, um artista que entrega o corpo inteiro no palco, um homem que viveu como quis, sem deixar que os preconceitos podassem sua criatividade.
Quando saiu o trailer, já fiquei emocionada, arrepiada… e passei a contar os dias. Só não fui na primeira sessão em Gravataí porque tinha outras demandas , mas aproveitei o feriado prolongado e no dia 2 já estava lá comprando meu ingresso. E se eu tivesse que definir em uma palavra a experiência de assistir esse filme, seria encantamento.
Como é bom ver um roteiro bem feito! Homem com H é um filme redondinho, que flui e completa seu sentido. Uma história tão bem contada que você fica duas horas vidrada na tela. Saí do cinema com vontade de fazer aulas com o Esmir, juro. Fiquei maravilhada com a sensibilidade dele na construção desse roteiro.
(Atenção: daqui em diante, CONTÉM SPOILERS! Recomendo assistir o filme antes de seguir a leitura.)
Homem com H conta a vida de Ney com um olhar poético. Um menino caminha na mata, sentindo a terra entranhar-se entre seus dedos, sentindo-se parte daquele ambiente. Ele entende que também é bicho, que é parte de um todo muito maior. O menino chega até um rio, mergulha os pés, conecta-se com a água que corre. Ele ainda não sabe, mas ele também é um rio.
Assim Esmir Filho nos apresenta o pequeno Ney, uma criança entre a liberdade de viver no interior e a rigidez do pai militar. Um garoto que já sente fascínio pela arte, e mesmo sendo reprimido pelo pai, transborda para o papel seu encantamento. Ney já era um artista mesmo antes de compreender que seria.
O filme Homem com H é a história de um rapaz que seguiu os próprios instintos. De um homem que entendeu muito cedo que poderia ser dono da própria vida, que não precisava limitar-se às construções sociais do que é certo ou errado. De um artista que enxergou que seu corpo inteiro era instrumento da arte e ferramenta de expressão.
Muitas pessoas já disseram que Ney Matogrosso é uma força da natureza. E o filme simboliza isso (muito bem, por sinal), com a imagem do rio. Ney é como aquelas águas: imenso e com uma força que supera todos os obstáculos até chegar ao seu destino, o mar. Ney enfrentou a brutalidade do pai, o mundo desconhecido ao sair de casa com apenas 17 anos, o ambiente rígido do exército, as inseguranças com o corpo magro e a voz aguda, as dificuldades de viver de arte, um sucesso meteórico em meio a discordâncias (com o Secos & Molhados), o recomeço, a censura, a Aids…. como a água, ele passou por todas as pedras e enfim, encontrou seu mar: o mar de gente para o qual ele canta no final.
O roteiro segue a cronologia da vida do seu protagonista, como se estivéssemos acompanhando os momentos mais marcantes vividos por Ney. O rio conecta o menino (e que talento o ator mirim! atuando com o olhar feito gente grande) e o homem vivido, alinhavando a história. Outro grande mérito do roteiro é a forma como o conflito é apresentado, desenvolvido e resolvido: começamos com o pai cobrando o Ney criança para “ser homem”, forçando brutalidade, repelindo qualquer indício que fugisse ao padrão de masculinidade. Seguimos com um jovem que experimenta ser bicho, que subverte os conceitos, que traz o termo andrógino para o vocabulário do povo, que apaga os limites entre os gêneros. E quando canta a música que dá título ao filme, Ney responde a questão: “eu sou é homem, e como sou!” Não é o que se veste ou como dança que determina ser homem, e Ney é o maior exemplo disso, sempre será.
Jesuíta Barbosa mostra porque é um dos maiores atores da sua geração. Entregou-se por inteiro ao personagem, desde a preparação do corpo, ficando esguio como Ney, à expressão corporal fiel ao biografado, à atitude… até o olhar intenso ele reproduz. A produção de arte também é impressionante, recriando momentos que já vimos em vídeo com perfeição absurda. E as cenas de show são tão reais que dá vontade de aplaudir, por pouco a gente não esquece que está num filme.
Rômulo Braga também se destaca como aquele pai que chega a ser cruel, mas aos poucos vai admirando aquele filho tão diferente do que ele esperava. Todo o elenco está muito sintonizado e com propriedade dos seus personagens. A trilha sonora foi muito bem escolhida, conectando as canções a cada momento da vida de Ney. O filme também é feliz em mostrar o artista múltiplo que ele é: canta, atua, desenha figurinos, confecciona figurinos, cria cenário, elabora a construção cênica do show… e ainda dirige outros shows. Ney é um dos maiores que temos.
Que bom que o artista teve a oportunidade de ver essa obra tão linda, à altura dessa vida tão potente. Mais sorte ainda temos nós, por Ney Matogrosso continuar cheio de vitalidade aos 83 anos, fazendo seus shows por esse Brasil. É um privilégio viver no mesmo tempo desse homem tão único, desse artista gigante.
Assistam Homem com H! Celebrem Ney Matogrosso!
